As memórias da pele
Ana Paula Dacota
Tenho a pele negra. Demorei muitos anos para me autodeclarar assim.
Porque o tom é mais claro. Porque meu cabelo não é pixaim. Por muito
tempo me autodefini como morena. Me declarava como “parda”.
Na minha certidão de nascimento a cor de pele foi declarada pelo tabelião
assim: “cor clara”. Muitas vezes fui chamada de mulata, nêga, neguinha,
moreninha… até conseguir encontrar a minha identidade, que não foi um
processo fácil, pois ser mestiço é como ser a “terceira margem” de um rio
de cores de pele que em nossa sociedade inflige a cada um legado de lutas
mais explícitas ou não.
Por muito tempo eu fechei meus olhos, minha mente e meus ouvidos
às discriminações que eu sofria. O preconceito é bem sutil, ainda mais
com os morenos ou negros mais claros. “A raiz do seu cabelo é lisa”,
“Seus traços são tão finos”, “Sua mãe é branca, relaxa”. Consequentemente
minha boca também se fechou. Vivia como se nada percebesse, como se
não tivesse ouvido, visto ou sofrido. Seguia em frente sem perceber que
aceitar calada o preconceito velado que me infligiam fazia com que eu
cada vez mais tivesse menos identidade.
Relembrando minha infância percebo que a cultura branca da minha
família mestiça, onde tinham branquinhos e moreninhos, não aceitava
meus cabelos anelados e um pouco crespos. Sim, eu tinha a “raiz lisa”,
mas cabelos cacheados. Lembro das tias que rodavam meu cabelo em
uma touca de meia de nylon e depois me colocavam embaixo de
secadores fortíssimos, que pareciam capacetes de alienígenas, para alisar
meu cabelo. Diziam que eu só ficava bonita de cabelo liso. E essa luta
contra minha natureza capilar adentrou a adolescência. Elas me levavam
em salões de beleza caros para “dar um jeito” em mim, fazer “escova”.
Minha madrinha chegou a pagar semanalmente um salão, pois só gostava
de me ver com os cabelos escorridos. “Você precisa ficar bonita para
arranjar um namorado, menina!” – era o que eu escutava o tempo todo.
Na juventude consegui me rebelar um pouco contra esse padrão.
Cresci sem uma Taís Araújo (modelo e atriz negra) ou uma Maju (a repórter
do tempo, do Jornal Nacional) para me espelhar. Por sorte tive algumas
amigas que conseguiam “dar um jeito” nos cabelos anelados,
e ao me identificar com elas e aprender o que elas faziam, me livrei um
pouco da ditadura da escova. A moda na época era passar gelatina para
definir os cachos. Dissolvíamos meia folha de gelatina na água quente,
esperávamos esfriar e passávamos no cabelo. Ficava uma maravilha, os
cachos eram domados e definidos. Aprendi que conseguia “ficar bonita”
sem a maldita “escova”. À medida que aceitava a beleza natural (com a
ajuda da gelatina!), eu ganhava um pouco mais de autoconfiança.
Conheci “um moço bonito” – expressão que era dita pela personagem
Gabriela, de Jorge Amado, e que eu também repetia toda hora dentro da
minha cabeça, como um mantra, sempre que lembrava dele – alto, cabelos
pretos bem lisinhos, pele clarinha e, para completar (aquele velho clichê!),
um belo sorriso. Foi em um aniversário de uma amiga, em uma baladinha
da zona sul, na Savassi. Ele era tímido, mas de repente se aproximou,
puxou conversa comigo e eu percebi que ele tinha um papo interessante.
Nos beijamos. Eu devia ter o quê? Uns 20 ou 21 anos, por aí. Nem era tão
novinha assim. Trocamos telefones, fixos. Estamos falando de idos da
década de 90, 1997, 1998, por aí, e, naquela época, a internet era discada,
coisa que a gente só usava aos domingos, e telefone celular ainda era algo
pouco difundido (era muito caro, coisa de gente rica) – eu ainda não tinha,
e ele também não.
A gente “ficou” e começamos a sair. Fomos ao cinema. O romance foi
tendo continuidade, todos os finais de semana marcávamos alguma coisa.
Era um barzinho aqui, outro ali… Estava começando a se delinear um
início de namoro. Nossos amigos começaram a sair conosco,
ele conheceu algumas amigas minhas, eu conheci alguns amigos dele.
Ele me ligava durante a semana e ficávamos horas ao telefone
(obs.: naquela época se usava o telefone para ligar um para o outro
para conversar, para namorar, coisa que raramente se faz hoje em dia).
Ríamos muito, era gostoso ficar escutando a voz um do outro, conversávamos
até o sono chegar e depois ficávamos eternamente nos despedindo,
esperando o outro desligar… Bons tempos, muito românticos!
Meus pais queriam conhecer o moço com quem eu estava saindo.
Eu também queria que ele conhecesse a minha família, assim ele poderia
frequentar a minha casa. Coisa de família tradicional mineira: agenda um
almoço, reúne todos, convida o moço e joga-o para os leões! Eu também
queria conhecer a família dele, eu não sabia a regra, chamei primeiro –
e ele foi.
Minha mãe preparou um frango recheado, me lembro de tudo como
se fosse hoje. Tudo impecável. A expectativa só crescia conforme a hora
marcada se aproximava. Ele chegou supertímido, e eu mal podia acreditar
que ele tinha ido à minha casa. Foi apresentado a todos e, muito educadamente,
respondia às perguntas dos meus pais, sobre o que fazia,
onde morava, etc. Meu pai simpatizou com ele, até lhe deu uma garrafinha
de cachaça de presente. Depois do almoço, conversamos um bocado
na varanda, ele parecia feliz, eu também estava, tinha corrido tudo bem…
Pelo menos era isso o que eu achava.
No dia seguinte, ele me ligou e me disse: “Ana, a gente vai ter que
terminar”. E eu respondi completamente atônita: “Mas por quê? O que
aconteceu?”. E eu escutei algo que jamais me esquecerei: “Seu pai é
negro. Minha família é racista. Eles não vão gostar de me ver namorando
você”. Eu fiquei em choque. Como assim? Ele era cego? Não sabia que eu
era morena? Não me lembro bem do que eu falei pra ele, só disse que era
um absurdo… Tive um choque, um apagão instantâneo. Fiquei mal.
Terminamos por telefone. Não vi o moço bonito nunca mais.
Meu pai depois me perguntou porque o moço tinha sumido.
Eu nunca tive coragem de dizer o motivo real do término e do afastamento.
Minha mãe e meu pai ficaram achando que ele tinha terminado
comigo porque eu havia “me comportado mal”, ficaram fazendo as
conjecturas deles, achando que eu não tinha agido como uma “moça de
família”. Mas não. Nunca tínhamos sequer tido maiores intimidades,
era um namorico mesmo, e ainda bem que foi só isso. Talvez por isso
tenha doído muito. Eu fiquei muito triste. E lidei com essa tristeza
solitariamente.
Existe uma frase de um famoso historiador que traduz o que impera
desde os tempos coloniais, da burguesia brasileira, que define pela cor da
pele os papéis das mulheres na sociedade: “As brancas são para casar,
as morenas para ‘trepar’ e as negras para trabalhar”. Eu acho que fronteiras
invisíveis ainda separam as mulheres pela cor, embora muitas coisas
tenham mudado e as mulheres tenham conseguido alterar essa lógica
racista imposta pela Casa Grande. Mas, como disse no início, a gente só
sente na pele o preconceito velado quando tenta adentrar o mundo
branco. Enfrentei isso de novo quando fui apresentada para a irmã
do meu ex-marido. Lembro da cena, nitidamente. Era aniversário dela,
no elegante bar Pinguim. De novo, estava na zona sul da cidade,
bar badaladinho da época. Procurei me produzir, me “arrumar”, seria a
primeira pessoa da família dele que eu iria conhecer depois de alguns
meses de namoro, logicamente queria causar uma boa impressão.
O ansiado momento chegou. Ela me cumprimentou secamente e disse
para ele, na minha frente, sem cerimônia alguma: “Você não muda o
biotipo, não é, meu irmão?”.
Como assim? Que biotipo? Fiquei sem entender nada. Sentei-me
atônita na mesa e, durante o resto da noite, ela e eu só ficamos nos
observando, não conversamos nada. Nos despedimos educadamente.
Só percebi o que se passou no dia em que eu vi a foto da ex-mulher dele,
pois ele era separado. Ela era morena também. Naquele momento eu já
devia saber que não importava o que eu fizesse, eu jamais seria considerada
uma boa mulher para ele, pois o julgamento e a sentença da família
dele já estavam dados. Minha outra cunhada me chamava carinhosamente
de “rosquinha”, pois à época eu prestava consultoria para panificadores.
Além do preconceito de cor, eu sofri um preconceito em relação ao meu
ganha-pão – que literalmente estava ligado ao pão – cujo labor durante
muito tempo nos sustentou. Foi a “rosquinha” quem pagou todas as
contas do irmão branco, de olhos azuis e burguês no início da vida
conjugal. Ficamos juntos o tempo que tínhamos que ficar, sempre com
muita luta, eu sempre fazendo a minha parte, sempre fazendo o possível
para manter o relacionamento. Depois que nós nos separamos, cortamos
os laços, totalmente. Nunca mais vi ninguém.
Olhando ainda mais fundo para meu passado, encontro as raízes do
racismo e do preconceito na história dos meus pais. Minha mãe branca
rompeu com a família dela pra casar com meu pai negro. A mãe dela
nunca aceitou o namoro deles. Ela teve que sair de casa pra se casar com
ele. Só conheci essa avó aos 7 ou 8 anos de idade. Mamãe e papai de
alguma forma tentaram reatar os laços e nos levaram na casa da vovó
desconhecida. Nessa ocasião, me lembro estar excitadíssima, de repente
surgia uma avó em minha vida, e durante a visita, mamãe estava tão
nervosa, acho que ela derrubou alguma coisa na sala e daí correu para a
cozinha, toda sem graça. Eu a segui e perguntei: “O que foi, mãe?”, não
entendia nada do que estava acontecendo. Ela me disse: “Nada, filha, está
tudo bem”, e de olhos fechados estava respirando ofegante. Acho que ela
chorou. Mas se recompôs e voltamos para a sala. Nunca mais vi a tal avó.