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Cachorrinhos

Cyntia Beltrão

Todos os dias, no enorme bairro, de enormes prédios, uma enorme
horda de diminutos cachorrinhos sai para passear.
Eles caminham ao lado dos seus humanos, com suas pequenas
patinhas, rabichos escovados, coleiras enfeitadas, lacinhos na cabeça,
roupinhas coloridas, os pequenos cachorrinhos.
Passeiam pelas ruas largas e cheiram as grandes árvores e os pequenos
arbustos, os diminutos jardins e as flores pequeninas.
Latem para outros pequenos cachorrinhos que também passeiam nas
horas frescas, deixando pequenos cocozinhos pelo caminho. Se envolvem
em pequeninas brigas, embaraçando as guias e prendendo suas pequenas
coleiras. Cheiram diminutas bundas de outros diminutos cachorrinhos,
tocando seus pequenos focinhos para lamber.
A horda dos pequenos cachorrinhos toma as ruas do bairro e,
por alguns minutos, sua marcha sôfrega muda a rotina de carros e da
gente da cidade. Obriga os idosos a mudarem de calçada, para as babás
com seus carrinhos caros de bebê, interrompe o passeio das crianças.
O latido dos pequenos cachorrinhos que passeiam acorda outros pequenos
cachorrinhos que estão ainda presos nos grandes apartamentos.
Então, mais cachorrinhos descem para passear.
Vão soltando jatinhos de mijo ao longo do caminho, mudando o
aroma elegante do bairro, dos detergentes e dos produtos de limpeza
dos prédios de luxo. Fuçam um eventual lixo aberto, desesperando seus
grandes donos e suas pequenas mulheres. Se embrenham nos terrenos
baldios se enchendo de picão.
Vão para os pet-shops e tomam banho, voltando limpinhos e tosados,
os pequenos cachorrinhos.
Os pequenos cachorrinhos tomam as ruas como um exército de
pequenos duendes peludos, com engraçados formatos de focinho,
latindo sua língua estranha e acordando com alarido o bairro.
Os donos dos pequenos cachorrinhos caminham trôpegos de sono,
ansiando por xícaras de café. Tentam acompanhar o passo de suas curtas
patinhas, enquanto pensam nas tarefas do dia, os donos dos pequenos
cachorrinhos. Pensam nos compromissos do trabalho e nas notas dos
filhos, na prestação do carro e no empréstimo do apartamento, nas férias
de final de ano e em como vão pagá-las, enquanto recolhem os cocôs dos
pequenos cachorrinhos. São como zumbis, os donos dos pequenos
cachorrinhos.
Nas ruas os carros passam apressados e desatentos, quase atropelando
alguns pequenos cachorrinhos quando estes se desgarram dos donos para
correr. Atravessam a rua atrás de motos e enfrentam caminhões e ônibus,
os pequenos cachorrinhos. Assustam seus donos e constrangem
motoristas. Corajosos, bufam de raiva, os pequenos cachorrinhos.
De volta pra casa, nos grandes apartamentos do grande bairro,
os pequenos cachorrinhos bebem muita água, comem ração super
premium e se espreguiçam ao redor dos donos. Se enrolam nas almofadas
caras, brincam com seus bichinhos de pelúcia e brinquedos de borracha.
Sobem na cama das crianças e latem para a empregada. Às vezes fazem
um xixi na sala e como apanham, então, os pequenos cachorrinhos.
De noite procuram a cama dos donos e o conforto dos corpos quentes.
São frágeis, os pequenos cachorrinhos.
Então, os pequenos cachorrinhos dormem seu sono de pequenos
cachorrinhos. E sonham com o tempo em que não eram pequenos e nem
eram cachorrinhos. Sonham com o tempo em que eram grandes lobos,
lobos que uivavam nas planícies, lobos que corriam pelas pradarias e
caçavam mamutes e bisões. Sonham com o tempo em que os poucos
humanos que caminhavam sobre a terra eram também peludos e
grunhiam, se escondiam em cavernas e temiam os grandes lobos.
Sonham com o tempo em que eram livres e enormes e viviam em bandos
com um enorme lobo cinzento como líder. O tempo em que eram livres
e não eram pequenos cachorrinhos.
Os pequenos cachorrinhos sonham seus pequeninos sonhos, e nesses
sonhos eles são lobos e mastigam gente.