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Coisas que não fazem tanto sentido assim

Vitor Drumond

“Mas tinha que nascer na véspera de Natal?”, pensou, um pouco
culpada, Norma, que carregava seu filho de um dia enquanto Cristóvão
penteava o cabelo dos dois mais velhos. Iam para a casa da avó, ganhar os
presentes do Tio Sebastião, que deixava crescer uma barba fazia dois
meses para parecer um Papai Noel mais realista nas fotos de família.
Nascer na véspera de Natal não fez de Tito um menino muito
especial, como pareciam supor as pessoas que perguntavam o dia do
seu nascimento e se admiravam com a coincidência de datas com Jesus.
No máximo, fez de Tito um menino um pouco avesso a presentes.
Afinal, nenhuma das tias, afogadas nos compromissos de fim de ano,
iria ter tempo para parar e pensar em algo que fosse a cara dele. “Ah, vou
comprar uma regatinha! É verão, e ele vai pra Piúma em janeiro mesmo!”.
E assim Tito tinha, aos onze anos, uma coleção de camisetas que, para um
menino magrelo, corcunda, com espinhas nas costas e pelos precoces,
não fazia muito sentido.
Coisas que não faziam muito sentido nunca fizeram muito sentido na
cabeça de Tito. Por que ganhar tanta camiseta? “Será que ninguém vê o
quanto eu sou esquisito, cheio de pelo encravado, ferida de espinha?”,
pensava Tito. Sempre que abria o armário, ia procurar uma roupa, estavam
quase todas sujas, menos as camisetas que ele nunca usava. Tito também
buscava explicações racionais quando perguntavam se Augusto, seu irmão
mais velho, tinha algum problema, alguma Síndrome de Down ou algo
do tipo. “Problema? Claro que não! Isso não faz sentido nenhum!
Ele é normal”, respondia para fora, mas por dentro sentia que batiam no
seu herói. Qual foi a surpresa quando, ao remexer nas coisas velhas
da mãe, Tito achou uma caixa com uma infinidade de receitas médicas
do irmão? Naquele momento, talvez não de uma forma plenamente
consciente, mas em uma dessas percepções indizíveis e nada racionais,
Tito começou a perceber que para entender Augusto ele precisaria se
aproximar de um jeito que ninguém sabia muito como chegar.
Tito lembrou dessa caixa de receitas médicas num dia em que Augusto
estava muito bravo. O jeito de Augusto ficar bravo era muito diferente de
tudo. Na escola, no alto dos seus dezesseis anos, Tito nunca havia visto
nada igual. Seus colegas, de cabelos tão bem cortados e uniformes tão
esticados, jamais teriam passado por algo assim. Também nunca viu nada
igual na rua, em Piúma, ou na tv. Na tv as pessoas até ficam bravas,
mas dura dois minutos, o tempo de cortar para o intervalo. Augusto ficava
muito bravo. Mas muito. E não parava. Tudo que Norma, Cristóvão e Tito
falavam deixava-o mais possesso ainda. Hugo, o irmão do meio, nem dava
as caras. Se trancava no quarto, colocava Aerosmith nas alturas e fingia
que nada acontecia. Não fingia, na verdade, porque ele chorava às vezes.
E contava o dinheiro que tinha, se era o suficiente para mudar de casa,
mas ninguém muda com 65 reais. Ao menos poderia sair naquela noite.
Passou pelo ringue, saiu de casa e foi para lá sabe onde. Norma viu Hugo
sair, se preocupou, queria dizer algo, mandar uma mensagem, dar uma de
mãe e dizer “cuidado”, “não volta tarde”, mas foi surpreendida pelo vaso
quebrado por Augusto, um vaso de cerâmica que ela amava, uma amiga
que havia feito, uma amiga que morreu no ano passado.
Nem sempre Norma, Cristóvão e Tito apenas falavam com Augusto.
Cansados, também gritavam, explodiam. E assim, normalmente, as brigas
tornavam-se eternas. Dessa vez, durou uma madrugada. Terminou
quando Augusto dormiu de cansaço e ninguém mais conseguiu dormir
direito, porque não sabiam como a fera ia acordar. E não sabiam se Hugo
ia ter um refluxo, porque ele voltou para a casa incrivelmente bêbado,
vomitou no banheiro, até tentou limpar para ninguém perceber que ele
tinha vomitado, mas Norma é muito boa para encontrar rastros. Hugo foi
o único que conseguiu dormir nesse dia. Um sono barulhento. Dezesseis
anos depois, Hugo fez uma polissonografia, descobriu que acordava umas
142 vezes enquanto dormia.
Tito não tinha a menor ideia de quando a briga começou. Na prática,
o primeiro berro foi quando Norma falou do cabelo de Augusto, que ele
estava descabelado. Augusto ia sair, meio sério como sempre, Norma fez
o comentário, e ele explodiu. Era difícil entender como a coisa chegou
no ponto em que chegou, com Tito e Augusto se atracando no chão
porque o caçula não aguentava ouvir o irmão mandar a mãe ir à merda.
Aí, Cristóvão entrou no meio e, na intenção de separar, acabou criando
uma luta de três. Augusto ficou muito bravo quando viu todo mundo
brigar com ele, porque, no fundo, realmente achava que estava certo.
Assim como em 1993, quando jogou um balde de água na televisão da
sala. Ele realmente pensava que a sua reação era proporcionalmente justa
ao fato de ter sido proibido de ver um programa inapropriado qualquer,
daqueles dos anos 90, de pessoas quase peladas em plena tarde. Cristóvão
deu-lhe um tapa.
“O pai me odeia”, Augusto gritou, enquanto se atracava no chão com
Tito. Tito sabia que o pai não o odiava, apesar de, naquele dia, ele ter
falado que era melhor Augusto ter morrido na operação que fez aos sete
anos. Naquela hora Tito se lembrou da caixa das receitas médicas e
percebeu, ainda não muito consciente, que talvez a forma de chegar nos
seus pais também teria que ser outra. Tito ia notar bem depois, aos 40 e
poucos anos, que aquele foi um momento de intensa intimidade entre ele
e o pai. Cristóvão não falou aquilo para todo mundo ouvir. Falou para Tito
como um desabafo, um pedido de socorro de quem não sabia o que fazer,
não tinha aprendido como lidar com isso. Mas estava ali. E iria continuar.
A fatídica briga de 2002, aparentemente por causa do cabelo de
Augusto, chegou ao nível em que todo mundo queria sair de casa,
assim como Hugo, mas Augusto não deixou. Norma, Cristóvão e Tito se
trancaram no quarto, na esperança de um descanso, mesmo que fosse de
quatro segundos, mas Augusto só chutou a maçaneta e incluiu mais essa
na lista das coisas quebradas naquele dia. Quando Augusto trancou os
pais em outro quarto, Tito sentiu que era o momento de ligar para o
hospital psiquiátrico e pedir para internar o irmão. O telefone fixo estava
arrebentado, mas o celular da mãe, milagrosamente, continuava intacto.
Tito ligou, mas Norma suplicou para não chamar a ambulância quando
descobriu que a polícia teria que vir, um procedimento padrão para conter
pacientes em crise. Norma tinha um medo gigantesco da polícia não
entender aquela cena completamente sem sentido, sem pessoas penteadas
e esticadas, sem intervalos para interromper, e eles atirarem em
Augusto. Tito tinha o mesmo medo e desligou o telefone. Para Augusto,
bastou a intenção do irmão: cortou relações com ele durante 4 meses.
Aos 30 anos, Tito se emocionou com a reportagem internacional de
uma mãe com o mesmo medo da sua. Obrigada a internar o filho autista
que ficou violento do nada (obviamente, do nada para ela, não para ele),
ela gelou a espinha quando viu os policiais que iriam contê-lo. O filho
havia mordido a mão do pai: aquele machucado, aquele rapaz fora de si,
é lógico que vão atirar. Os policiais, então, cantarolaram uma música e
acalmaram os ânimos do rapaz autista. Tito achou bonito. Em algum lugar
no mundo estavam estudando e tentando entender como lidar com
aquilo. Que pena não saberem disso antes.
No alto dos seus 31 anos, Tito teve vontade de quebrar algo. Chutar a
primeira coisa que aparecesse em sua frente. Pegar um balde d’água e
jogar nas televisões na vitrine da loja de departamentos. Não fez.
Ou melhor, fez. Deu um chute de leve em uma caixa de papelão,
com a intenção de descontar o ódio, mas sem causar grandes prejuízos.
Sentiu, naquele momento, que havia perdido algumas oportunidades em
sua vida. Nunca conseguiu ir para o mundo. Um menino magrelo,
corcunda, feridas de espinha, pelos precoces e que se sentia esquisito
demais para aparecer, para se colocar, para buscar oportunidades. Tito não
entendia, via suas fotos de criança e se achava bem bonitinho. Ao mesmo
tempo, lembrava muito bem como se sentia na época. Lembrou dos
colegas da escola, esticados e penteados e muito criativos com os apelidos
para Tito. Tito jamais esqueceu do dia em que a professora passou
O corcunda de Notre Dame e a sala inteira gritava seu nome. Ele nunca
conseguiu reagir. Tinha medo de que, se reagisse, deixasse escapar uma
voz mais fina, um jeito menos macho de ficar bravo. E isso não poderia
acontecer: ninguém podia descobrir.
Augusto já sabia há algum tempo. Desde quando começou a entender
um pouco de computadores e viu o histórico da Internet de Tito,
com aquelas fotos todas. Para Augusto, foi como ter visto uma caixa
de fósforo: não fez a menor diferença. Continuou brincando com Tito e
brigando com Tito, exceto nos quatro meses em que não se falaram.
A primeira pessoa para quem Tito apresentou o namorado foi
Augusto. Foi em um domingo, um dia antes de Tito fazer 33, e logo
após Augusto caminhar com o Léo, um educador físico especializado
em pessoas especiais que Tito tinha descoberto e indicado. Augusto
ajudou a fazer a ponte desse namoro de Tito para Norma e Cristóvão.
Tito achava que os pais talvez não fossem aceitar muito bem. Nem precisava,
na verdade, ele logo percebeu. Mas foi bom que tenha sido assim.
Começaram a almoçar juntos em alguns domingos, os cinco.
Em um desses almoços, Augusto fez tudo. Estava aprendendo a
cozinhar, fazia um curso de culinária básica com Cristóvão. Na hora da
sobremesa, conversaram sobre a possibilidade de alguém conhecer
alguém que pudesse ajudar Hugo, que andava bem sumido. Estavam
bem preocupados com essa notícia dele acordar umas 142 vezes
enquanto dormia.