Das pequenas mortes
Ewerton Martins Ribeiro
O caminho de ida parece o
da volta, mas é só ilusão
1.
Cinco dias sem beber e eu já estava enxergando melhor. Respirava bem
e, apesar da ansiedade, sentia uma doce disposição. Eu também tinha
parado de fumar. Fazia semanas que já não encontrava uma carreira,
e talvez por isso eu tenha enxergado de imediato a diferença do seu corpo
em relação às demais, a bunda avantajada, o porte de quem carrega um
mundo nas costas. Caminhava em sua lenta movimentação, coisa de
quem experimenta no simples ato de existir uma grande responsabilidade.
O que haveria levado-a a sair? É o que eu teria me perguntado, se ainda
vivesse o tempo das questões. Mas não. Deslumbrado pelo inesperado do
encontro, meti-lhe um tapa sem nada hesitar, gozo estranho o de se dar a
um ímpeto irrefletidamente, confiando nas razões que a própria
consciência ainda não alcançou. Foi acertá-la para eu ser tomado por um
êxtase envergonhado e de certa forma repulsivo, algo semelhante àquele
prazer que atravessa quem termina por gozar dentro quando o plano e
a promessa eram tirar bem no último instante.
2.
Não sei o que levou a rainha a sair das paredes e parar ali, no meio do
corredor, como que esperando o meu ataque. Talvez fosse um prêmio que
surgia como consequência da minha recente mudança de comportamento,
é o que eu pensaria se ainda considerasse conexões entre fatos
desconexos – afinal, estamos falando aqui sobre os efeitos que as formigas
têm na vida de cada um de nós, não sobre um efeito borboleta que
pudesse ser causado por esta insuportável e necessária abstinência.
Não. Limito-me a aceitar que eu apenas dei a sorte de – era o final da
manhã de um domingo, o instante em que eu me coçava inteiro, a já não
mais me poder suportar; limito-me a aceitar que eu apenas dei a sorte de
encontrar, no meio do meu pequeno apartamento, a rainha da comunidade
de formigas que divide comigo esta morada na parte mais baixa
deste bairro já quase nem mais lembrado; a sorte de conseguir acessá-la
antes mesmo que toda a colônia me atacasse em uma grande investida,
e então o fim de uma história desprovida de qualquer particularidade
memorável senão as formigas e seu papel na comunidade dos insetos
e no universo dos homens que, assim como eu, não sabem o que fazem
até o momento em que já não há nada mais a realizar senão aceitar que
o que resta é esmagar alguma outra coisa no meio do caminho,
na impossibilidade de esmagar a eterna pedra, e então seguir em frente.
3.
Esmaguei-a e, então, segui em frente. Deixei seu corpo ali mesmo,
como se dele fizesse um aviso (aqui se esmagam rainhas), e fui ao
banheiro lavar minhas mãos. Uma sensação estranha tomou conta do
espaço, ao mesmo tempo de júbilo e de dor, de culpa e de enlevo – tirar a
vida de um ser importante (com um único tapa, eliminar a potência de
duas décadas de vida): há algo mais a se dizer sobre isso, ainda que eu não
saiba exatamente o quê. Instantes antes, ao ouvirem o rígido exoesqueleto
de sua progenitora se estraçalhar sob a alma da minha palma nua,
sentinelas que caminhavam céleres congelaram: era como se, de repente,
tudo em suas vidas se houvesse perdido, e a razão mesmo de ser formiga
houvesse sido esmagada junto àquele corpo que até então lhes oferecia
propósito e referência, ainda que sem nenhuma autoridade. Lavadas as
mãos, tive a sensação de que as operárias que presenciaram a cena
passaram a caminhar lentamente na direção dos meus pés, relembrando
o assassinato: era como se buscassem um destino que se havia antecipado
antes mesmo de ocorrer – que irreversível é o destino que se apresenta
fora do tempo.
5.
Passados esses dias, ainda agora a carcaça está lá, no mesmo lugar,
o centro do meu corredor, neste apartamento em que os dias já se
parecem repetir em simulacros de si mesmos. Contudo, agora eu já não
me sinto mais tão bem. Cada palavra tem uma razão, a despeito de sua
insignificância, e por isso eu miro o meu cadáver: ele segue no mesmo
lugar. Esperava que as formigas aparecessem para carregá-lo e comê-lo,
esquecidas de que aquela, assim como as demais, era também uma
formiga, uma formiga como outra qualquer, apenas uma outra formiga
anterior, ou talvez se lembrando justamente disso, mas não: nenhuma
formiga apareceu. Sigo para a cozinha, abro o armário: nenhum indivíduo
da colônia ronda a vasilha de açúcar buscando ensinar formas de se
esgueirar para dentro do que sempre mais importa em busca de algum
importante prêmio (pelos vãos de tudo o que se faz tampa, os espirais:
custei a descobrir, o pote entre as mãos).
6.
Hoje, já não há mais formigas no armário, debaixo da cama, na mesa
da sala. Há vários dias, já não há mais formigas se esgueirando no vaso
sanitário, a fazer sabe-se lá o que entre os germes e a água, a histeria da
carreira, quase uma saudade, as dinâmicas do cordão: não. Em lugar
algum há mais formigas. Não há mais formiga alguma por aqui.
De alguma forma, estamos falando aqui de muitas vidas simples,
todas elas reunidas na existência em um pequeno apartamento de pouco
mais de quarenta metros quadrados em um bairro já esquecido desta
cidade sem conhecimento de si – e, então, a mais relevante morte se
apresentando subitamente, em um instante fora da consciência,
a absoluta privação da vida. Um juiz perguntaria quem em sã consciência
mataria uma formiga de mais de dois centímetros com a pura palma nua.
Juiz algum há para julgar o que a justiça é incapaz de conceber como
questão. E não há mais formiga alguma em lugar algum.
7.
Outras rainhas podem haver, os dias podem ser precisos, mas nada
disso importa mais. O que importa é o agora, este estranho instante em
que eu ainda estou aqui. Não: já não é tempo mais de correição. Eu ainda
estou aqui. O pequenino cadáver continua no meu corredor, já apodrecido
pelo tempo – o tempo do tempo, tão diferente para as formigas e para
os homens, e este apartamento se dissolvendo na memória de um bairro
já sem nome, sem destino. Não. Eu já não me sinto mais tão bem.
A cidade já não se sente mais tão bem. Não há mais carreiras, não há mais
cordão, não há mais nada em lugar algum agora. De repente eu estou
absolutamente sozinho no meio do meu corredor, eu sinto a minha mão
latejar, ela lateja como se cortasse o ar na direção do meu rosto, rosto que
já faz tanto tempo, fulminante: a formiga ainda está lá. Eu ainda estou
aqui, mas talvez já não haja mais nada a se dizer depois de agora. Não.
Não há nada a se dizer depois de agora. Não é a primeira vez que alguém
diz isso. Nunca se poderá saber quando será a última.