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Entrevista: Marcílio França Castro

Flávia Denise de Magalhães

Marcílio França Castro é um autor belo-horizontino. Em 2016, logo após
o lançamento da primeira edição impressa da Chama, ele aceitou o convite de
ser entrevistado sobre seu processo de escrita para a segunda edição da revista,
que era prevista para o ano seguinte, mas só saiu em 2019. As horas de
conversa, parcialmente transcritas aqui, foram um diálogo rico entre uma
jornalista em busca de fatos da criação e um escritor disposto a abrir as portas
de seu processo. Como ocorre com conversas levadas de coração aberto,
a entrevista inspirou um momento de reflexão. Sobre o fazer literário e sobre o
fazer de uma revista literária. Sobre o lugar de um jornalista e o de um especialista
em literatura. Sobre fazer o melhor que podemos e não parar até que a
teimosia interior esteja satisfeita – ou ao menos cansada. É por isso que
somente agora publicamos esta entrevista, realizada em setembro de 2016,
no café do Cine Belas Artes, e revisada pelo autor e pela jornalista em
setembro de 2019.
Como você começou na escrita?
Bom, eu poderia ficar aqui a noite inteira contando essa história,
e poderia contá-la de várias maneiras. Na verdade, responder a essa
pergunta, uma pergunta sobre a origem da escrita, é inventar um passado
para você e para os seus livros. Eu poderia, por exemplo, começar da
infância, das leituras de contos de aventura que minha mãe fazia para
mim, poderia ainda buscar nos exercícios literários do colégio um começo.
Ou talvez quisesse contar a história de um escritor tardio, que só publicou
seu primeiro livro depois dos quarenta anos. Todas as alternativas seriam
incompletas, todas conteriam alguma verdade e várias imprecisões.
Então, qual você prefere? (risos).
A que você quiser contar. A que você acha que vale a pena contar hoje.
Despertei para a possibilidade de escrever, de criar, quando era adolescente,
por volta dos 16 anos. Foi uma época em que comecei a ter uma
ligação maior com a literatura, a descobrir livros e autores, a frequentar
mais a biblioteca pública. Gostava muito de estudar português, e tendo
a achar que há uma relação entre o meu gosto pela gramática, um gosto
exótico, meio anacrônico, e a aproximação com a ficção. O estudo da
língua se misturou de algum modo com o da literatura, as leituras de
gramática e de romances vieram juntas também. Um fato curioso é que
comecei a fazer revisão de textos, como forma de ganhar dinheiro,
muito cedo, com 17 anos. Gosto de imaginar que o revisor e o escritor
nasceram juntos, ao mesmo tempo ajudando-se e atrapalhando-se um
ao outro.
O que você escrevia?
Lembro que, antes de tudo, tentei alguns poemas, uns poemas horríveis.
Quando pedi a opinião de um professor, ele me apontou tantos problemas
que fiquei envergonhado. Tive a sensatez de não insistir.
Mas escrevia também narrativas. Escrevi dois ou três contos, juvenis,
ingênuos, é claro, mas sempre com o incentivo de amigos, e isso foi muito
importante para mim. Ganhei um concurso no colégio, o prêmio foram
livros. Entrei para a faculdade com a ideia fixa de ser escritor: era uma
ideia que me parecia natural. Por volta dos 20 anos, comecei a trabalhar,
e o projeto de escrita foi sendo sugado pelas obrigações. Quando você é
novo, acha que o tempo é infinito, que pode adiar indefinidamente as
coisas. Durante duas décadas, fiquei apenas esperando. Acho que sempre
me considerei um escritor, mesmo sem publicar nada. Passei um tempo
inventando para mim mesmo esse personagem – o do escritor sem livros.
Quando fiz 40 anos, a história teve que mudar.
Como foi o processo de publicação do seu primeiro livro?
Publiquei meu primeiro livro em 2009, A casa dos outros. O segundo veio
logo em seguida, em 2011, e o terceiro saiu em 2016. A casa dos outros
acabou sendo o resultado de uma coletânea de textos, e não um projeto
preconcebido. Só depois de ter os contos prontos é que comecei a pensar
na organização deles, no modo como deveriam se apresentar em conjunto,
no que havia de comum entre eles. Nesse momento descobri que
todas as narrativas traziam pelo menos um personagem fora do lugar,
deslocado, e isso não tinha sido intencional. O título escolhido indicava
perfeitamente esse traço, e foi um ótimo achado na época. Hoje já não
consigo mais conceber um livro que seja simplesmente uma reunião de
textos. A construção do livro, para mim, faz parte do processo ficcional
desde o início. Por isso, a questão do arranjo, da montagem, é sempre
muito importante. Mas, voltando à sua questão, preparei o volume e
mandei para a editora 7Letras, que até hoje, acho, tem um espaço para o
recebimento de originais em seu site. Em uma semana me responderam,
dizendo que tinham gostado e que queriam publicar. Foi tudo muito
simples e rápido. Não cheguei a enviar o material para outras editoras.
Tive sim um pouco de sorte, porque sei que eles recebem um grande
volume de propostas. O que aconteceu em seguida, já com o livro publicado,
é que ganhei uma bolsa de criação literária da Funarte para escrever
o segundo livro, o Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse.
Você distingue contos e ficções. O que você entende por “ficções”?
Não tenho nada contra o termo “conto”, preciso dizer. Uso-o também,
muitas vezes não há como escapar dele. Considero, porém, que é um
vocábulo desgastado, e de certo modo limitado, para designar as
narrativas curtas, o leque vasto de mecanismos que elas podem explorar.
De que forma limita?
De um modo geral, o termo conto, apesar de suas variações, e de uma
tradição que é plural, costuma ser associado a uma história, uma história
concentrada e tensa, mas com um enredo mínimo, personagens. Traz a
expectativa de algo a ser revelado no final, um mistério ou um enigma.
É isso o que está na cabeça das pessoas quando você fala em conto.
Acontece que os textos que podemos escrever não se limitam a esse
arranjo. O termo “ficções” para mim é mais interessante porque sugere
um leque maior de possibilidades da escrita ficcional, seja ela narrativa ou
não. Um comentário ou uma pergunta podem ser ficção, um conjunto de
notas também. Uma ficção pode assumir a forma de entrevista, de aforismo,
de relato, pode ser também um conto tradicional. A característica
desses textos será, pelo menos como ponto de partida, o descompromisso
com a realidade, a liberdade de imaginação. Se você, ao escrever,
se submete de antemão a um gênero literário, às fórmulas prontas de um
gênero, está engessando o exercício criativo. Está engessando não apenas
as possibilidades do texto, mas a relação dele com outras áreas da arte e
do pensamento – a história, a ciência, as artes plásticas, a poesia. Tem um
texto meu que acho um bom exemplo, está no segundo livro. Chama-se
“Da dívida que temos para com os cães”. É uma frase, uma longa frase
ficcional. Você poderia lê-lo como uma observação ou um registro,
uma nota de rodapé talvez, só que sem o texto principal. Me parece uma
fórmula não catalogável. Acho difícil chamá-lo de conto.
“Ficções” me parece encaixar bem com o que você fez no Histórias
naturais, em que você parece mostrar uma predileção pela ficção curta.
Tenho publicado ficções curtas, algumas curtíssimas, de um parágrafo,
quase instantâneas. Mas publiquei narrativas extensas também,
que poderiam até ser chamadas de novelas. O Histórias naturais tem uma
divisão muito marcada nesse aspecto. São quase dois livros em um,
como disse um crítico. O texto que abre o livro tem 50 páginas. Ele
compõe um conjunto de seis narrativas de maior fôlego. Já a segunda
parte do livro reúne 25 textos curtos. Gosto da ficção curta, acho que ela
tem uma força intensa na literatura contemporânea. Costumo dizer que
há hoje uma espécie de solicitação das formas breves, tanto para quem
escreve quanto para quem lê. As pessoas leem com muita rapidez, os
textos circulam com rapidez, e essa agitação, digamos assim, essa velocidade,
acaba impulsionando a disseminação das formas mais breves.
Pílulas ficcionais. Por outro lado, há temas e propostas que exigem um
tempo mais duradouro e complexo, uma persistência, e aí nos aproximamos
do romance. Ao escrever, estou aberto a qualquer possibilidade.
No momento, por exemplo, estou com um projeto de um romance,
alguma coisa que vai me demandar anos de trabalho… É o que prevejo.
Já tenho um roteiro pronto, um planejamento, porque, nesse caso,
não consigo avançar sem um vislumbre do caminho, sem uma
preparação.
Você é o arquiteto, não o jardineiro.
Exatamente. O Antonio Candido mencionou certa vez a dualidade “escritores
táticos, escritores estratégicos” – acho que em um prefácio ao
Amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos – para distinguir os escritores que
traçam um roteiro abrangente, um projeto de texto, os estrategistas,
daqueles que vão decidindo as posições da escrita à medida que ela
acontece, os táticos. Os táticos são mais instintivos, mais arriscados.
Posso te dizer que minha escrita não é feita de surtos, nada jorra de um só
fluxo na minha cabeça. Não consigo assentar no sofá e entrar em transe,
varar a noite e escrever um capítulo perfeito. Não funciono dessa maneira.
Sempre que tenho uma ideia, preciso anotá-la, amadurecê-la. O trabalho
que vem em seguida é longo e exaustivo.
Você lê autores contemporâneos?
Sim, leio autores contemporâneos, acho até que me atraem mais do que
os clássicos. Mas leio também os clássicos, os antigos, leio compêndios,
enciclopédias, ensaios, notícias. Leio de tudo, ou um pouco de tudo,
porque minha leitura nunca é cheia. Tenho um “problema” que vem se
agravando, minhas leituras estão cada vez mais inconclusas, descontínuas,
interrompidas. Creio que é uma doença comum atualmente. Tenho grande
dificuldade de ler um livro inteiro. Leio um pedaço, passo para outro
livro, encho a cama de livros, não completo nenhum. Para me justificar,
costumo citar o Macedonio Fernández, escritor argentino. Tem um livro
dele, traduzido no Brasil, que se chama Museu do Romance da Eterna.
É um livro inacabado, publicado postumamente. Macedonio Fernández é
um escritor do começo do século 20, foi uma espécie de inspiração
intelectual e literária para o Jorge Luis Borges. Nesse livro, que é na
verdade uma série de notas anunciando um romance por vir, ele faz uma
espécie de tipologia do leitor. Tem o leitor de vitrines, por exemplo,
que só lê títulos e capas, tem o leitor indeciso, o contínuo. E tem o leitor
salteado, ou truncado, que é aquele que só consegue ler pedaços de livros.
Macedonio faz então um comentário que considero muito preciso;
ele diz que o texto truncado é o que fica na sua memória. Se ler aos
pedaços é um defeito, tento tirar vantagem desse defeito como escritor.
Reter fragmentos de leitura, pequenas imagens, palavras, eis aí um gesto
que é uma verdadeira mola propulsora da minha escrita. Costumo dizer
que um bom livro não é exatamente aquele que te absorve, aquele que
você lê de um só fôlego, como um mergulho. O bom livro é aquele que te
faz parar, suspender a toda hora a leitura, porque está te provocando,
ativando sua imaginação.
Você acha que ser um escritor atrapalha você a ler?
Em grande medida, sim, porque o trabalho de escrita demanda muito
tempo, e esse tempo é subtraído do tempo da leitura. Por outro lado,
raramente consigo escrever sem ter à mão um conjunto de livros para me
estimular. É um paradoxo agradável. A pesquisa é uma parte importante
do meu trabalho, e é uma parte que me agrada, que me dá prazer.
A leitura acaba entrando na minha vida como uma espécie de ferramenta
para a escrita. Ler por puro prazer é algo que faço raramente.
Você era um leitor voraz antes de retomar a escrita?
Nunca fui um leitor voraz. Sempre fui um “imaginador” – será que existe
essa palavra? Um leitor imaginativo, mais voraz na imaginação do que na
leitura propriamente dita. Acho que essa é uma característica minha,
desde a infância remota, um prazer que sempre exercitei, o de refletir,
simular hipóteses, a partir de elementos escassos. Assentar com amigos
numa mesa de bar e ficar conjecturando, imaginando. Essa é talvez uma
das coisas mais importantes para a minha atividade literária. Não existe
literatura sem imaginação.
Como você faz ficção?
Não acredito em fórmula mágica, você não faz literatura seguindo receita.
Você tem que criar sua própria receita e sempre ir alterando essa receita
de alguma maneira. Como disse, começo fazendo notas. Para mim, a nota
é o princípio de tudo. Na cronologia da criação, a nota precede o alfabeto.
Saí do meu tempo de silêncio e de espera como escritor a partir do
momento em que comecei a anotar mais. Anoto tudo, em qualquer lugar,
anoto em qualquer suporte. Estou conversando com você aqui, posso
rapidamente pegar um bloquinho com o garçom e rabiscar algo que me
chamou a atenção, uma estranheza qualquer. Quando caminho, e caminho
bastante pelo centro da cidade, costumo parar em uma lanchonete,
em um café, pego um guardanapo no balcão, peço uma caneta emprestada
para a atendente, e anoto. Registro um pensamento que me veio de
repente e que não quero perder. Não gosto de perder pensamentos bons.
Essa é a matéria elementar dos meus textos. Enfio o papelzinho no bolso,
continuo andando. Na próxima lanchonete, a ideia já melhorou um
pouquinho, pego outro guardanapo, faço outra anotação, guardo no bolso.
Chego em casa, estou com o bolso cheio de guardanapos (risos).
Estou exagerando no exemplo, mas a coisa funciona mais ou menos desse
jeito. Pego esses papéis, grampeio, deixo na gaveta. Aquilo vai me render o
quê? O que eu vou fazer com aquilo? Normalmente, não sei de cara.
Às vezes junto essas notas com outras, já existentes, de algo que já estou
produzindo. Outras vezes, se pressinto que há um relato ali, uma ideia
aproveitável, abro uma pasta só para elas, dessas de plástico transparente,
em L, e ali está um começo. Depois o apontamento vai para o computador,
ganha um status novo, um arquivo. Em uma bancada, tenho uma
pilha que deve ter mais ou menos umas trinta pastas transparentes,
cada uma com alguma coisa que estou escrevendo, um projeto de escrita.
Como disse Kafka em uma de suas cartas noturnas, esses são “os cavalos
encilhados”, querendo sair correndo pela pista. Aos poucos vou trabalhando
com os textos. Faço revisões sucessivas, no computador e à mão,
até achar que está minimamente digno. Se você corrige e o texto piora,
é hora de parar.
Quantas versões você chega a fazer?
Sou perfeccionista, obsessivo. O texto curto é um tiro, então você tem que
descobrir o modo de entrar, o modo de sair, a melhor perspectiva,
que tipo de linguagem cabe ali, qual que é o ponto de vista, as informações
que devem ser omitidas. Tudo isso tem que ser muito bem feito
para que a ficção funcione, porque ela só funciona na linguagem e pela
linguagem. Não adianta ter uma ideia bacana se a linguagem é ruim,
se a construção é equivocada. Não existe ideia boa com texto ruim.
Então é preciso esse engajamento, esse envolvimento, esse amor entre
a linguagem, o discurso e a imaginação. Eles precisam trabalhar juntos
para o texto crescer, senão o seu tiro sai pela culatra. Uma ficção de um
parágrafo, por exemplo, pode me exigir dez versões. Se o texto é longo,
divido em partes, caminho por partes, faço dezenas de versões e revisões.
A revisão é para mim um procedimento de escrita.
Você considera que é difícil ser publicado no Brasil? Não foi para você
no seu primeiro livro, mas você considera que é difícil a publicação?
Nunca foi tão fácil publicar. A tecnologia de edição e impressão está
disponível dentro de casa. Todo mundo escreve, todo mundo publica.
Há também o fenômeno da proliferação de editoras, há muitas editoras
pequenas hoje que fazem um trabalho importante de garimpagem de
autores novos. Sem falar nos meios virtuais, nas publicações eletrônicas.
O difícil é ter leitores, ver o texto circular, ser de algum modo reconhecido.
Acho que, nesse aspecto, apesar da força das redes sociais, o selo de
uma editora respeitada ainda tem muito valor. Não sou de reclamar.
Tenho a crença, talvez inocente, de que, se aquilo que você faz é bom,
em algum momento vai encontrar os leitores que merece.
E os leitores? O que você acha dos leitores?
Os leitores são preciosos. Sou agradecido àqueles que gastam o seu
tempo lendo livros meus. Com tanto livro para ler, com tantos filmes e
séries para assistir, ter leitores é um luxo. Toda vez que encontro um leitor,
tendo a duvidar de que ele existe. Alguém me diz: “Poxa, gostei tanto do
que você escreveu”. Costumo pensar: “Mas não é possível que você tenha
lido” (risos). Todo comentário de leitor é valioso, às vezes surpreendente;
é o leitor que amplia os seus livros e que te ajuda a entender os seus
limites, as suas fraquezas. Mas, se você quer escrever, não pode ficar
preocupado com isso, não deve ficar pensando no leitor, em agradar ou
desagradar a quem quer que seja. A grande preocupação do escritor é
escrever. Já é o bastante. Nesse sentido, o leitor precisa ser esquecido.
Cabe aos leitores ler.
Cabe a mim escrever, e é isso que procuro fazer da melhor maneira
possível, do jeito que consigo. Escrevo por teimosia, por obsessão.
Há uma certa patologia no ato de escrever, algo que talvez pudesse ser
tratado com medicamentos. Tenho receio de tomar remédios indicados
para curar manias, obsessões, angústias, coisas desse tipo. Afinal, sem
esses defeitos, como é que se pode criar?
Onde está o prazer na escrita?
Escrever é bem mais torturante do que prazeroso, mas há momentos
agradáveis. As preliminares, por exemplo, as primeiras insinuações, a
estranheza com um assunto, uma figura, uma cena. A pesquisa, as descobertas,
o levantamento de possibilidades. As preliminares da escrita são o
que há de melhor. Se pudesse parar aí, estaria ótimo.
(risos)
Quando comecei a esboçar “A história secreta dos mongóis”, que é um
texto que está no Histórias naturais, o trabalho de pesquisa foi delicioso.
Antes de pegar o boi pelos chifres, ou seja, antes de trabalhar concretamente
com o texto, fiz uma investigação sobre a cartografia mongol,
quase inexistente, e sobre mapas de modo geral. É a busca de um curioso,
livre, sem as amarras acadêmicas, as obrigações com a autoridade das
citações. Você não tem compromisso com a verdade, mas tem com a
precisão, com o modo como vai usar as informações ficcionalmente.
É a lógica da ficção, a lógica estabelecida dentro da narrativa, que vai
determinar o rigor da sua escrita, que critérios você vai ter que obedecer.
É um jogo gostoso de se fazer. Descobri que os mapas mongóis sobreviventes
são todos dos séculos xvi e xvii, e foram copiados de mapas
mongóis mais antigos. A cartografia mongol antiga meio que desapareceu,
porque foi abafada pela cartografia chinesa. Sem querer, vim a saber
que foi [August] Strindberg, um autor sueco de teatro, romancista,
quem descobriu um mapa mongol raro em uma biblioteca na Suécia,
no começo do século xx. Essa é a melhor coisa, você começa a descobrir
histórias extraordinárias, que não vão entrar na sua, mas vão encher sua
cabeça de hipóteses, de delírios.
Antes de começarmos, você pediu que eu deixasse claro que
conversamos num café. Por quê?
Tudo aquilo que escrevo me pede um grande esforço de reescrita.
Se escrevo, reescrevo. Incessantemente. Então existe uma diferença muito
grande entre eu responder às suas perguntas verbalmente, oralmente,
e prepará-las no papel. A conversa gravada não me dá a chance de burilar
as respostas. Então é preciso dizer que estamos em uma mesa de café,
que eu não sabia quais seriam as perguntas, e que foi tudo meio à queima-
roupa. Para as pessoas saberem que minhas respostas não foram
escritas por mim, que foram transcritas e editadas por você. Na entrevista
falada, na entrevista oral, você se permite gaguejar, você se permite errar,
você se permite repetir coisas, porque a fala é espontânea. Na escrita,
há um texto que foi depurado de alguma maneira. A escrita é um artifício,
e quem lê esta conversa precisa saber das condições desse artifício.
Livros publicados
A casa dos outros (7Letras/2009)
Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse (7Letras/2011)
Histórias naturais (Companhia das Letras/2016)