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Genealogia – Renata Ferri

Renata Ferri

Ana Maria entrou no saguão do prédio. Junto dela, vinha o barulho
repetitivo dos saltos grossos de suas sandálias que se chocavam contra
o piso de mármore: poc, poc, poc. As pernas curtas e roliças, sustentando
um mundo interior cheio de ansiedade, produziam passos rapidinhos e
interrompidos, como se um pé não pudesse nem esperar o outro terminar
de tocar o chão para ter a sua vez de pisar.
Henrique tinha acabado de terminar seus 70 minutos de esteira na
academia do condomínio e estava sentado sozinho, de pernas abertas e
braços caídos para os lados em uma das cadeiras de madeira do salão de
festas. Suado e meio boquiaberto, deixava-se sentir o cansaço, soma do
dia inteiro de trabalho ao exercício físico.
– Eu estou aqui – ele disse, chamando a atenção dela. Mesmo olhando
várias vezes, de um lado para o outro do recinto, balançando os cabelos
ruivos escassos, com as raízes brancas, ela não o tinha visto. Estava nervosa,
a ponto de voltar a expressar o tique nervoso de ficar encolhendo
o pescoço para encostar a ponta do queixo no peito, que anos antes havia
abolido com sessões de terapia ocupacional e antidepressivos. Ele estava
calmo, respirava fundo e tinha os olhos semicerrados: curtia a onda da
endorfina recém-liberada e se preparava para o embate como algum
guerreiro ocidental que medita antes do duelo.
– Vim aqui para dizer que você precisa ficar do meu lado nessa
questão, não tem outro jeito, eu sei que você vai entender isso e me
ajudar. Trouxe aqui uns papéis, os que chegaram para mim…
– Calma, Aninha, vem aqui, dá um abraço no seu irmão. – Ele se
levantou devagar, apoiando a palma da mão no assento da cadeira e
erguendo primeiro o quadril. Ela soltou os ombros, que estavam tensos,
e levantou os olhos em sinal de aborrecimento.
– Você está suado.
– E daí, você está usando esse perfume de brechó que eu detesto, mas
mesmo assim não vou deixar você vir aqui na minha casa sem te dar um
aperto. – Ela caminhou até ele vencida e soltou os braços sobre os ombros
largos do irmão, enquanto ele administrava o usual cumprimento que
quase lhe quebrava as costelas.
Depois disso, os dois se sentaram um ao lado do outro e Ana Maria
apoiou os cotovelos na mesa, levando a cabeça em direção às mãos para
cobrir os olhos. Ela queria chorar, mas tinha medo de não conseguir.
Pressão, botox, remédios controlados, todos inimigos das lágrimas que ela
julgava necessárias naquele momento. Henrique se curvou em direção a
ela, colocando a mão pequena e de dedos grossos nas costas da irmã.
– Não acredito que ela fez isso comigo. – A voz saiu cortada, rouca,
os olhos se molharam, mas sem inundar. – Você não sabia, né? Fala para
mim que você não sabia.
– Pega lá os papéis, deixa eu dar uma olhada. – Ela entregou o
envelope pardo, pesado de tantas folhas cheias de números e gráficos
impressos. Todo o capital que tinha entrado e saído da empresa nos
últimos vinte anos estava ali documentado.
– Você sabe que eu sou ruim de contas. Nunca me meti com essa parte
de financeiro. Meu negócio sempre foi vender, achar os clientes, dizer para
ela onde eu achava que a gente tinha que investir. Às vezes ela concordava,
às vezes não. Eu via o dinheiro entrar na minha conta no fim do mês e
pronto, não ficava querendo saber de onde vinha tintim por tintim.
E quem cuidava da parte que ia para você era ela também, eu nunca quis
saber disso, eu confiava.
– Mas tá tudo aqui, Henrique, os desvios que ela fez. Coisa que tinha
que ter sido dividida igual entre nós três e ela embolsou, deve ter
colocado tudo naquela casa de praia. Pra que isso, um lugar daqueles,
que parece de cinema. Nem o Brad Pitt deve ter igual. O que vai ser de lá
agora? Vai ficar com aquela mulher detestável e o filho dela. – Ao dizer
isso, jogou a folha de papel sobre a mesa, enojada.
– Não fala assim, Aninha. A Fernanda está sofrendo. Você foi
no casamento delas, falou para mim que achou bonita a cerimônia.
Pensei que tinha aceitado, deixado para trás sua desaprovação. E sobre
o menino, o que ele tem com isso? Ele não obrigou a mãe dele a se casar
com a nossa irmã. O cara só está lá existindo, sendo moleque. Se um dia
chegar a receber dinheiro que veio de nós, fazer o quê? Ele não pediu
nada, caiu de gaiato nessa história. Mereceu, sei lá, carma.
– Eu já sabia que ia ser assim, você só defendendo, defendendo.
Henrique jogou o corpo para trás, querendo se afastar, respirou fundo
e depois falou, bem alto, mas sem descontrole emocional:
– E defendo mesmo. Esse é o meu papel na família. Defender você pra
ela e ela pra você.
– Duvido que você já peitou a Clara por minha causa.
– Você não sabe de nada. Quando você decidiu parar de trabalhar e
ficar zanzando de lá para cá com a Maíra em psiquiatras, eu coloquei
panos quentes.
– Até hoje eu não sei por que ela ficou tão indignada quando eu saí da
empresa. Tenho certeza que não fiz falta, rapidinho vocês acharam alguém
melhor para me substituir. Eu ia ficar lá carimbando cheques, fazendo
inventário, enquanto minha filha se matava? A Clara nunca se dispôs a
entender. Ela nunca soube o que é ser mãe e tudo o que a gente faz para
não ter que ver um filho morrer antes da gente. Ela ficou com raiva da
minha saída e descontou assim, me roubando.
– Você não acha que essa história toda de Maíra é um pouco de
exagero? Depois de tanto tempo, ela tem que melhorar, não tem?
Ana Maria levantou de supetão, encostou o queixo no peito umas três
vezes, arregalou os olhos e fez que ia gritar, mas falou baixinho:
– Minha filha foi estuprada, Henrique! Você sabe o que é isso? Dentro
de uma universidade. Ela tinha um futuro brilhante, terminou o ensino
médio e passou no vestibular com 14 anos. E eu deixei ela ir fazer o curso
sozinha, com um tanto de alunos mais velhos. Meu Deus, onde estava a
minha cabeça? Quando ela era criança, falou para mim: “Mamãe, me leva
no médico. Eu preciso que ele me dê um remédio pra eu parar de ser
chata. Eu não aguento meus coleguinhas, sou muito chata”. Sabe por que
ela se achava chata, Henrique? Porque era inteligente demais. Eu nunca
fui inteligente. Essa menina era minha salvação, e aconteceu isso.
– Olha, Aninha. Eu tenho filhos. Não arrisco dizer que são inteligentes,
mas estão lá, fazendo o que dá. E o melhor que a gente faz é deixar,
não tentar controlar demais. Senão a gente nunca vai relaxar.
– Eu não sei o que é relaxar. Acho que nunca relaxei em toda a minha
vida. Neste momento eu estou aqui conversando com você, mas imaginando
de qual janela a Maíra pode pular.
– Eu sei que a Maíra tem problemas, só que faz mais de dez anos que
você está vivendo com essa ameaça de que ela vai se matar. Não pode
fazer nada porque Maíra vai se matar. E ela nunca se matou, entende?
Mas a Clara morreu, ficou meses lutando contra um câncer brutal,
sofrendo, perdendo cabelo, virando um fantasma. E você nem viu.
Nem deu as caras porque Maíra não poderia ver ninguém morrendo
que ia querer morrer também. Tá bom, se a sua filha fosse tão inteligente
assim, ia dar um jeito de sair dessa crise depressiva eterna.
Ana Maria contraiu o rosto durante um segundo, como se quisesse
juntar olhos, boca e testa na ponta do nariz. Depois jogou a cabeça para
trás sem calcular a distância e a bateu no topo do encosto da cadeira,
que era meio alto. Falou, olhando para cima:
– Não dá para acreditar nisso que eu estou ouvindo.
– Eu não ia te falar nada, mas como você já não está gostando do que
eu estou dizendo mesmo, vou te contar. Semana passada ela veio pedir
maconha para a Júlia. Ela me contou: “Pai, eu fumo, sim, de vez em
quando. Mas não sei se isso é bom para a Maíra, não. Acho que o senhor
devia contar para a Tia Aninha que ela veio me pedir”. Você percebe que a
minha filha veio confessar que é maconheira só para proteger a prima?
E sabe o que eu acho? Que quem quer se matar não tem tempo de pensar
em fazer a cabeça com baseadinho.
Henrique respirou fundo tentando puxar para dentro de si, junto com
o ar, um jeito de não chorar. Mas chorou, com o rosto muito vermelho e a
boca deformada de um jeito que, se não fossem as lágrimas, pensariam
que ele estava dando uma gargalhada. Ana Maria quis sentir raiva dele por
duvidar da legitimidade de todos aqueles anos de luta para salvar Maíra de
um fim desastroso. Mas na verdade ela só pensava que queria conseguir
chorar daquele jeito. Ele chegou perto de novo e jogou o corpo grandalhão
em cima dela, mais um abraço. Ela ficou imóvel. Depois de quase
um minuto de soluços, eles se descolaram e ficaram em silêncio um
tempo, ambos olhando para o nada.
– Preciso tomar um banho. – Henrique falou ao se levantar e indicar
que aquele encontro estava no fim.
– De jeito nenhum. Eu vim aqui para saber se você vai me apoiar,
me ajudar a recuperar o dinheiro que era para ter sido meu e a Clara
tomou. Não tem essa, Henrique, meus lençóis estão cheios de buracos,
meu colchão parece um papel de tão fino. Eu gasto mais de cinco mil reais
por mês em remédios. Para mim e para ela. Tem mais as consultas,
as terapias. Eu não vou dar conta.
– O dinheiro que vai para você todo mês é muito mais de cinco mil
reais, Aninha. Dá para você comprar vários colchões. Você podia até
fornecer remédios para a ala de oncologia infantil do hospital se quisesse.
O que você faz com tanta grana? Por que não compra um perfume que
não tenha esse cheiro de velhice? Onde você enfia o dinheiro, Ana Maria?
Está sempre aí chorando miséria. Não dá para entender. – Henrique agora
estava incomodado e impaciente. Para ele, aquela conversa já tinha que
ter acabado.
– Você não tem noção do que é ter uma filha doente e sem pai.
Da pressão que é ser divorciada. O Murilo nem lembra que tem filha.
É um retardado. Por que você não me impediu de casar com ele,
Henrique? Por que ninguém fez isso? – O semblante de Ana Maria era
de extrema severidade. Sempre tinha essa expressão quando repreendia
alguém por tê-la permitido que se casasse com um qualquer viciado em
videogames que nunca conseguiu sair da adolescência.
– Não sei por que você sempre tem que falar do Murilo. Ninguém
nem lembra mais que esse cara existe. E daí se ele não está presente?
Não faz falta. Pode ser que tenha se casado com você pelo dinheiro.
Mas não conseguiu nada no divórcio, é isso que importa. Talvez por isso
sumiu. Deixa ele para lá.
– Eu não tenho ninguém. E estou à mercê dos meus irmãos para ter o
sustento. Foi aí que eu cheguei na vida. – Este seria o momento ideal para
que ela chorasse enfim, mas nada.
– Você não trabalha. Quantas pessoas você conhece que não trabalham
e têm uma bolada dessa caindo na conta a cada quinto dia útil? Vou ser
sincero com você: eu e a Clara achamos por bem que quem deu o sangue
dia e noite trabalhando e fazendo crescer a empresa recebesse essa
gratificação, um bônus.
Ao ouvir isso, Ana Maria puxou o envelope que estava na mesa
para junto de si e o apertou forte contra o peito. Ficou em pé e deu uns
passinhos de costas.
– É assim. É assim. Eu não tenho família, não tenho nada. – Agachou,
ainda abraçada ao envelope. Seus joelhos estalaram.
– Para com isso, Aninha. Dá a mão aqui. Deixa eu te ajudar a
levantar. – Ela deu a mão e ficou claro que, sem ajuda, não teria conseguido
se erguer.
– Irmão não serve para nada. Ainda bem que eu só tive uma filha. Pelo
menos ela foi poupada de ter que lidar com esse tipo de coisa. – Disse,
cambaleando até se firmar novamente em cima das sandálias de saltos
grossos. Saiu fazendo os mesmos poc, poc, poc que marcaram sua
entrada.
Henrique tomou banho, jantou sopa de macarrão com cenoura e
carne. Relatou à esposa mais ou menos o que tinha acontecido durante
a conversa com Ana Maria, ao que ela respondeu: “Como é louca essa sua
irmã!”. Tentou dormir, mas não conseguiu, então, aproveitou que Júlia
tinha saído com o namorado e foi vasculhar o quarto da filha em busca de
maconha. Não encontrou. Ana Maria e Henrique nunca mais se falaram
sem a intermediação de um advogado.