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Medida paliativa

Bruno Augusto Martins

O olhar, eu já disse, eu sempre digo, o olhar, está tudo lá, eu vejo.
Me chamam de louco perturbado desequilibrado e riem e eu rio,
disfarçando constrangimento e certa tristeza de nunca ser entendido
ou levado a sério. A fim de me ver seguro num comodismo desconhecido,
tento acreditar não se tratar da realidade a qual chamo universal,
realidade universal, até que a caminho do banco sacolão trabalho cinema
mercado casa eu sou alvejado por dezenas centenas de olhares que dizem
mais claramente do que qualquer língua e eu digo para mim mesmo
foda-se a realidade universal, porque se não se trata de uma realidade
com a qual eu me identifico, ela de nada me vale. Abaixo a cabeça,
me protegendo, e sigo o caminho.
Entro no metrô. Trago sempre comigo um livro, estou sempre lendo,
enfio o livro na cara e ainda assim sinto o calor dos olhares. Terá algo em
meus cabelos, um inseto nojento, uma folha morta? Estará suja a minha
roupa, aberta minha braguilha, pelo avesso a blusa? Leio e releio a mesma
página com desatenção. Fecho o livro.
Três garotos me observam. Um me desdenha, acha a minha roupa
elegante demais, não é preciso um suéter e blazer num fim de tarde de
vinte e três graus. Pensa que minha calça ficaria bem melhor em seu pai
do que fica em mim. Começo a sentir calor, se eu tirasse o blazer me
sentiria melhor. Seco o suor da testa como se arrumasse os cabelos.
Outro garoto tem ódio, tanto ódio que sua boca crispa, se pudesse me
cuspiria, daria com uma lâmpada fluorescente em meu rosto, chutaria as
minhas costelas, o som de cada uma se quebrando seria um gozo mais
profundo após um gozo profundo. O último, inocente, parece ser mais
novo, tem curiosidade, olhar explorador, embora prefira se manter
distante, até com o olhar.
As trocas de olhares que tenho com esses desconhecidos na rua
não são triviais, há algo de oculto que faz com que essa troca seja mais
intensa, mais profunda, sei que para ambos, vejo em seu olhar um ar
interrogativo como quem pergunta o que acabou de acontecer;
mas a mim, essa troca ainda tem um quê lancinante, difícil de aturar
diariamente.
Não sei ao certo quando comecei a entender esses olhares, talvez um
dia após usar alguma droga que fizesse os meus sentidos se aguçarem,
porta de entrada, depois não teve mais volta. Poderia pensar que um dia
me acostumarei com essas invasões, julgamentos à primeira vista,
que toda essa grande merda será passageira. Posso pensar, é verdade,
como todos eles fazem, mas isso não quer dizer que será verdade.
Em uma das passagens de ano há anos fiz uma promessa de honestidade
para comigo e, cumprindo essa promessa, me vejo obrigado a assumir
que isso não será passageiro, como a saudade daquele que resolvera
desaparecer também não passa.
Desvio o olhar dos garotos, novos, adolescentes, podem me julgar
tarado, pedófilo, me escorraçar, me jogar para fora do trem, saciar aquela
vontade não revelada. Dentro está mais quente do que lá fora, por isso
suo, poderia tirar o blazer, mas chamaria muita atenção, mais atenção do
que já chamo não querendo chamar e me mantendo imóvel quase
feito estátua.
Acham curioso o suor que me nasce sob os olhos, gotículas que gota
a gota se avolumam em grossas bolsas. Esse suor que, na minha infância,
quando secava, virava sal e as crianças, de uma malvadeza admirável,
riam de minha condição, e lá ia eu correndo para lavar da cara o sal,
segurando o choro num sorriso sem graça, o medo de manchas
permanentes. A mãe havia dito que o sal mancha, mas não sabia se o
desse tipo também.
Apesar de o garoto ter julgado exagerada minha roupa, tenho me
vestido como os demais, comprando roupas nas grandes lojas de departamento,
onde não há vendedores colados à nuca, exagerando nos atendimentos
aos clientes. Calças marrons, camisas xadrezes, blusas lisas,
sapatos sociais. Nada de acessórios, nenhum corte de cabelo extravagante,
nenhuma estampa tribal, nada muito colorido, ou muito preto,
tudo extremamente medíocre. É verdade que me visto como um senhor
cuja idade é o dobro ou até o triplo da minha. A curiosidade então será
essa, eu não vestindo roupas, mas figurinos, como seu eu fosse um
personagem de um filme de baixo orçamento andando por aí com uma
câmera às costas?
No entanto, não se trata somente de olhares curiosos e odiosos
(embora estes sejam mais preocupantes do que aqueles, porque, em uma
coragem repentina, podem se tornar uma ação física, indo para as mãos
fechadas e os pés prontos para os chutes, e eu não sei me defender senão
abaixando a cabeça para fugir dos olhares), há os mais corriqueiros, os que
fazem toda essa clareza ser repudiada: olhar de piedade, de condolência,
de triste solidariedade. Sinto-me o mais miserável dos homens:
abandonado, desconsolado, desamparado, acabado, um homem que,
para conseguir viver, necessariamente precisa da misericórdia deles,
desses que passam por mim diariamente.
Embora eu consiga identificar cada tipo de olhar a mim direcionado,
a razão desses mais típicos ainda desconheço. Minha aparência é tão
lamentosa a este ponto? O que em meu aspecto me faz parecer
lamentável, miserável, funesto?
Sigo o meu caminho, tentando demonstrar que não fui atingido, eu,
desentendido, superficial, preocupado com problemas mais concretos
e urgentes. Pago a conta, compro maçãs e cebolas, corro para não perder
o coletivo e chegar atrasado no trabalho.
Estive de férias, pensei em viajar, Porto Seguro Cabo Frio Guarapari.
Olhei datas, pesquisei hotéis e pousadas, praias e restaurantes.
Me lembrei dos olhares e desisti, poderia gastar o dinheiro com outras
coisas, reformar a sala, comprar uma cadeira de balanço, montar um
jardim, me matricular numa autoescola. Passei o mês em casa,
saindo somente para o imprescindível, preferindo os horários de menor
movimento nas ruas e nos estabelecimentos. Li mais do que o de
costume, revi séries, assisti a novelas e a programas que dizem ser
voltados para o público feminino.
Há alguns meses saí das redes sociais. Não porque eu não gostasse
das pessoas com as quais eu mantinha contato, nem porque eu as invejava
por terem o que têm de material, mas por cobiça de ter a vontade de viver
o externo como elas vivem, intensamente, parece. Meus colegas de
trabalho me chamavam para o happy hour de toda sexta. Fui embora cedo
demais tantas vezes, dei tantas desculpas para não mais ir que hoje eles já
nem me convidam, nem por educação, mesmo já sabendo de minha
recusa. Melhor assim.
Ontem eu voltei a trabalhar, fui e voltei de táxi, não estava me sentindo
bem o suficiente para enfrentar todos os olhares incomuns dessas pessoas
desconhecidas. Me arrumei no horário, tomei o café, li as manchetes do
jornal, ouvi as informações do trânsito no rádio e fiquei sentado no sofá,
imóvel como faço no trem e no ônibus, por quarenta e cinco minutos,
até não dar mais tempo de ir de coletivo e chamar um táxi. Na volta do
trabalho pensei: “Estou cansado demais para pegar transporte público
lotado, minhas costas doem, meu ombro dói, quero chegar rápido em
casa”, mas me lembrei do acordo que eu fizera comigo mesmo, e mesmo
assim mantive a ideia do desnecessário, ficando livre do pavor diário que
enfrentaria por mais um ano até as novas férias e a nova reclusa de um
mês tranquilo e ordinário.
Hoje me obriguei a voltar à normalidade, enfrentar as filas,
rodar catracas, segurar nas hastes altas e sujas, atentar nas freadas bruscas,
descer no ponto certo, na estação certa. Chovia. As pessoas seguiam
seus caminhos com normalidade, equilibrando suas sacolas-bolsas e
guarda-chuvas. Me escondi sob a obscuridade do meu, via somente
pernas, sapatos molhados, botas descoladas.
A caminho de volta, enquanto eu caminhava um pouco mais para
esperar o ônibus em um ponto menos movimentado, embora mais
perigoso, alertam para assaltos facadas tiros sequestros arrastões,
chegou um cara com um extrato bancário, dizendo que deveria ter
recebido certo valor, no entanto, o banco o havia deixado retido. Me pediu
dinheiro para ir pra casa. Infelizmente, de fato, eu estava sem dinheiro,
somente com cartões. Nas minhas poucas palavras, ele me direcionou um
olhar de compadecimento, não um olhar de súplica que eu esperei sem
esperar, porque ele estava pedindo dinheiro, não eu. Naquele momento
foi como se os papéis tivessem instantaneamente se invertido, eu era o
pedinte, e ele o impossibilitado de ajudar. Não sei dizer quem era o mais
miserável entre nós dois.
O que deu a ele permissão de inverter os papéis? Até mendigos
pedintes necessitados se sobressaem a mim. Não me espantaria se um
cachorro de rua, tão abandonado quanto eu me faço, chegasse a mim
e me fizesse carinho e me desse de comer e de beber e me levasse para
sua casa prometendo cuidados intensos.
Na esquina fica uma agência do meu banco. Era só eu ter ido até lá,
sacado dinheiro e dado a ele. Mas seu olhar era tão piedoso, de quem
assiste a uma dessas histórias desgraçadas desses programas sensacionalistas,
que me causou, também instantaneamente, um mal-estar que me
arrepiou os pelos grossos dos braços. Olha, desculpa, eu realmente não
posso te ajudar, eu disse, e ele se fez silencioso com aquela maldita
complacência nos olhos. A imagem no fundo se embaçou, senti o chão se
ondular, tive a certeza de que cairia aos pés daquele homem. Dez, quinze
segundos talvez, intermináveis, um de frente para o outro, pessoas tantas
passando em volta, e os dois ali, atrapalhando o fluxo. Avancei um passo.
Ele desenhou um frouxo sorriso indulgente e sem som, disse tudo bem.
Saí andando, meio atordoado, pensando na possibilidade da matrícula
na autoescola.
E agora esses três garotos, cochichando, rindo e me olhando.
Não tenho dúvidas de que falam sobre mim. Poderia dizer que tentam
adivinhar sobre minha vida, criando uma história elaborada, casamento
traição desejos pervertidos. Mas não são capazes disso, são infantis,
previsíveis, julgam o que veem: veja como o sapato dele é torto, ele não
vira a página do livro há tempos, o blazer dele é velho, veja como ele sua,
que nojo, deve estar fedendo.
Corro o olhar pelo vagão. Outras duas crianças me olham, mais jovens
que esses três, uma de aparentemente quatro anos olha se perguntando o
que é isso que vejo; a outra, mais velha, de uns onze, olha através de mim,
pensando num jogo, na escola nova, num par de peitos.
As portas se abrem na estação. Um velho senhor se senta à minha
frente. Corre os olhos sobre mim e lembra que tem um suéter
exatamente igual ao meu perdido em seu guarda-roupa, deveria voltar a
usá-lo, é bonito, essa cor marrom é bonita, quem lhe dera de presente?
Comprara? Definitivamente deve usá-lo já, nem que seja para ir à padaria
comprar aquele jornal de cinquenta centavos.
O lugar ao meu lado está vazio. Ninguém se senta, preferem ficar de
pé. Uma senhora sexagenária e sua colega mais jovem. Compadecimento,
compadecimento. A mais velha tem inveja de não ser mais desejada como
a colega. Se economizasse aqui e ali, poderia fazer um simples procedimento
estético, remoçando uns sete, dez anos. A colega, temerosa de um
estupro e incomodada com os olhares despudorados de vários homens,
dá ouvidos às lamúrias sem fim da sexagenária, contentando-se em se
sentir mais segura e em dar segurança à senhora.
Recebi e recebo vários outros olhares, não me atrevo a buscar quem
me olha, são olhares que me chegam. Guardo o livro na bolsa, sempre
mantendo a cabeça baixa. Logo a voz robotizada dirá pausadamente o
nome da estação em que desembarco – Es-ta-ção Car-los Pra-tes – e logo
estarei na segurança cega de minha casa.
Adolescentes voltando da escola, alguns senhores, poucas senhoras:
curiosidade; várias senhoras de várias idades, casadas, solteiras, mães, tias,
avós, solitárias, emigrantes, um senhor: compadecimento; senhores
velhos, de idade intermediária, altos, gordos, baixos, barbados, barbeados,
carecas, de terno, de roupa suja de tinta, cheirando a sabonete barato,
a suor seco, umas poucas senhoras (duas, de saia jeans até o tornozelo):
ódio brando, ódio agudo, aversão, repugnância e um pouco de inveja e
quase nada de compadecimento.
Não desvendo ninguém, não leio nada mais do que dizem os olhares,
o que está por trás deles me exaure e, então, não avanço. Logo a voz
robotizada dirá o nome da estação em que desembarco e logo estarei na
segurança cega de minha casa. Aperto a bolsa contra o peito, este seria um
momento perfeito de ajustar os óculos com o dedo indicador no alto do
nariz caso eu usasse óculos.
Me levanto. Entre os ruídos dos muitos passageiros, ouço a risada
abafada dos três garotos. Terá algo grudado na parte traseira de minha
calça, um rasgo entre as pernas que o blazer não esconde? Mantenho a
cabeça baixa e espero junto à porta o trem chegar à estação. A voz robotizada
fala, o som chiado, quase inaudível, não prestei atenção quando ela
anunciou as outras demais estações. O trem, que na cidade deram o nome
de metrô, diminui a velocidade. Vejo as pessoas paradas, prontas para
entrar, esperando um lugar para sentar. Um lugar que, naquela hora,
naquela estação, não há. Poucos para sair e muitos para entrar,
o enfrentamento não será justo, as pessoas não são respeitosas a ponto de
deixarem sair para depois entrarem. Trombo com quatro, uma xinga, as
outras três nem se perturbam, já estão acostumadas.
Subo as escadas. Rodo a catraca. Os policiais ferroviários me observam
com atenção. Me sinto não somente ameaçado como também uma
ameaça, homens de pele como a minha, para eles, naturalmente são
uma ameaça. Penso em sorrir, mas seria estranho demais, até suspeito,
ninguém sorri para esses homens mal-encarados, vestidos de preto,
prontos para o ataque. Saio rapidamente. Atravesso a passarela.
Muitas pessoas vêm, poucas vão no mesmo sentido pelo qual eu vou.
Abaixo a cabeça, não quero me certificar de mais nenhum olhar, mas sei
que todas aquelas pessoas olham, todas, até as cegas, com suas bengalas
finíssimas, parecem me olhar, ainda que não me vejam.
Só seguir para o fim da passarela, virar à direita, seguir uns duzentos
metros e logo estarei na segurança cega de minha casa. Ainda sofrerei
com umas duas dezenas de olhares, nesse horário de pico as pessoas
lotam as ruas. Evito pensar no amanhã e no que terei de enfrentar,
minha ânsia de chegar em casa é tanta como se de lá eu nunca mais
precisasse sair.
Às vezes penso se, andando dessa forma, quando escolho estudar o
chão, um dia aquele que me instalou saudade passou por mim e também
me dirigiu um desses tristes olhares, sem ter a coragem de me dizer uma
palavra qualquer, nossa quanto tempo, como vai, está tudo bem, coisas do
gênero. Pensando essas coisas, me esqueço dos olhares, embora ainda os
sinta, como o ar que me entra pelas narinas.
O esforço da caminhada me faz suar ainda mais no alto da testa.
Uma mão dentro do bolso a segurar a chave também sua. Mantenho a
cabeça baixa – minha medida paliativa de proteção –, ignorando as outras
gentes, e sigo o caminho rumo à segurança cega de minha casa.