O âncora
Marcelo de Faria
Eu me lembro bem do dia em que a caixa enorme chegou à redação da
rua Esperança. Eduardo e Zélia desembrulhavam camadas e camadas de
plástico, incomodando a todos com aquele barulho chato. E bem no meio
daquele isopor todo, ele estava sorrindo de um jeito meio bobo, meio
sinistro, olhos esbugalhados e uma expressão de quem estava se preparando
para um retrato, mas o fotógrafo disparou logo antes do combinado.
Foi um pouco estranho vê-lo pela primeira vez. Acho que jamais me
acostumaria com ele, na verdade.
– Pesado ele, né, Zélia? Ajuda a gente aqui, Cristóvão. Vai ficar só
olhando, moço?
Eu estava em choque. Mesmo assim, me juntei ao Eduardo e enfiamos
as mãos embaixo das axilas do âncora para conseguir colocá-lo de pé.
– Gente, bem que falaram… O homem é sua cara Cris… Veja só.
Parece até gêmeo.
Era duro, mas já tinha me visto no vídeo o bastante para concordar.
Era eu, no meu auge, há uns 8 anos, quando já tinha a credibilidade dos
cabelos brancos, mas só metade das rugas.
Tivemos que chamar mais dois repórteres da redação para arrastar o
âncora até a bancada do telejornal. Sentamos ele na minha cadeira, e
aquilo fez um som abafado e surdo.
Naquela noite ele ficou ali. Desligado. Olhei pra ele por mais alguns
minutos e talvez tenha sido tempo demais, pois, quando voltei para a
redação todos me olharam com aquela cara de preocupação disfarçada.
Sorri meio sem jeito e saí em silêncio.
No dia seguinte cheguei cedo, e isso foi bom, porque não gastei tempo
procurando vagas nos arredores do prédio da TV. Quando entrei na
redação já tinha um pessoal da técnica fazendo os ajustes finos no estúdio
para o novo âncora.
Mas ele ainda estava desligado, sentado ali na minha bancada, onde,
por mais de 20 anos, fui eu o apresentador do Diário Vespertino. Em vez
de acatar minhas sugestões de substitutos, jovens repórteres que poderia
treinar para ser o novo rosto da emissora, a diretoria achou melhor seguir
a onda da concorrência e comprar o último modelo de âncora do mercado.
Agora minha missão era treinar um robô.
Alguns repórteres estavam de pé, parados, olhando com curiosidade
para o acontecimento. Perguntei se eles não tinham matérias para fechar e
dispersei-os. Ficou ali só o Walter, um sujeito barbudo, de óculos e vestido
de um jeito que fazia dele um caricato jornalista de impresso diário, como
se fosse uma daquelas miniaturas de “profissões” que vendiam há alguns
anos para alunos universitários iludidos.
O Walter realmente foi um excelente repórter no seu tempo, e acho
que muito da sua habilidade se deve à sua feição sempre interrogativa.
Tudo que ele dizia parecia uma pergunta, e era fácil se abrir com ele. Com
a crise no jornal de papel, migrou para apresentador de televisão há uns
bons anos e, segundo ele mesmo, nunca mais foi feliz.
– Cristovão, é isso mesmo? – indagou ele.
– É bem isso. Já estou velho e cansado, Walter. Você também sabe
como é. A vida em redações detona qualquer saúde. Precisava de um
substituto.
– Aposto que não vão pagar os direitos de imagem, né? – era um
deboche, ele sabia que a TV jamais pagaria por algo assim.
– Olha, achei até interessante se eternizado dessa forma. Agora,
enquanto tiver telejornal, estarei no ar… Se tudo correr bem, hoje já não
apresento mais o Diário Vespertino.
– Mas não vai nem se despedir do telespectador? Vamos fingir que
ainda é você?
Eu não tinha pensado naquilo ainda, e a pergunta do Walter doeu.
Era sua especialidade: perguntas dolorosas que não tinham respostas.
Quando ele era repórter no impresso, assessores de imprensa pediam o
microfone e encerravam coletivas depois de ele falar, enquanto o entrevistado
ficava atônito como se tivesse levado um soco no estômago e
flagrado a esposa com outro ao mesmo tempo.
Sem assessor para tirar o microfone do Walter, ele continuou.
– Eu não tenho nada com isso, mas é um desrespeito trocar você por
esse bonecão aí, desse jeito.
– Não sou eu que escolho né, Walter…
Nesse momento, um dos meninos da técnica mexeu em algo nas
costas do âncora e ele ligou fazendo um barulho que parecia um soluço
misturado com uma guitarra distorcida. Se sentou em uma postura ereta,
fez uma expressão séria e falou em voz alta:
– Modo de configuração iniciado – sua voz não parecia nem um pingo
com a minha, e isso me preocupou um pouco de início.
– Olá, você pode me ouvir? – perguntou um dos magrelos da técnica.
– Sim.
– Você pode me enxergar?
– Sim.
– Por favor, fale seu texto de inicialização.
– Sou o âncora modelo 103 Série HJ, programado para apresentar
telejornais. Venho com um perfil pré-configurado e posso inicializá-lo
agora mesmo. O perfil é de: Cristóvão Moreira Filho – e essa última frase
ele falou com uma voz idêntica à minha. Eu não imaginava o quão estranho
seria ouvir isso.
– Carregue o perfil pré-configurado – ordenou o menino.
Então o rosto dele se movimentou em espasmos e, logo em seguida,
ele era eu.
– Boa Tarde, companheiro telespectador. Boa tarde, dona de casa que
não perde nosso programa. Estamos prontos para mais uma edição do
Diário Vespertino.
– Ok, inicialização está ok, mas o OS do Âncora está meio desatualizado.
Thiaguinho, você chegou a atualizar esse aqui? – perguntou o que
pareceu ser o líder dos experts em computadores.
– Eu não. Ninguém pediu nada, está do jeito que veio na caixa mesmo.
Sem tirar nem pôr uma linha de código – respondeu o garoto.
– Esse termo “dona de casa” já pegava mal nos anos 90, se a gente
coloca isso no ar vão apedrejar a emissora nas redes sociais.
– Ora, nada disso. Dona de casa é uma forma carinhosa de tratar a
telespectadora que tem responsabilidade no lar e está sempre com o
Diário Vespertino, jovem.
A voz era a minha, mas quem estava falando era o âncora. Todos
olharam com espanto para o robô, que gesticulava de forma meio aleatória.
Fiquei especialmente incomodado porque pensei em dizer a mesma
coisa, mas não formulei as palavras a tempo. Me senti velho. Lento.
Obsoleto, na verdade.
– Thiaguinho, confere pra ver se não vem um pen-drive, cd-rom,
disquete, alguma coisa assim. Lê o caralho do manual do… – berrou o
chefe, mas foi interrompido pelo âncora.
– Peço desculpas ao amigo telespectador pelo descuido aqui no
vocabulário do meu colega de bancada. A rede Minerva pede desculpas,
e vamos garantir que isso não se repita…
Dessa vez, foi o técnico que cortou o robô:
– … que esse troço já está me irritando.
– Parece que ele tem uma função de atualização automática. É só
deixar ele aqui que faz tudo sozinho. – observou um dos meninos.
– Ah, maravilha então! Vamo nessa – todos se levantaram ao mesmo
tempo e deixaram a sala. Fiquei impressionado com a moleza desse
pessoal que trabalha com computadores e suspirei. Mas não sem notar
que, um instante antes, o âncora também soltou um gemido.
– É, colega, não está fácil mesmo. Primeiro essa presidenta e, agora,
essa molecada preguiçosa, né… – percebi que ele colocou a mão sobre o
meu ombro.
– Esses meninos não sabem o que é trabalhar. Ficam no computador o
dia inteiro – desabafei, sem me dar conta de que batia papo com uma
máquina – mas não temos presidenta há anos, você está realmente por
fora colega. É o presidente agora.
O âncora apertou os olhos por alguns segundos e, quando reabriu,
soltou o ar e exclamou de uma vez:
– Tem razão. Me confundi. É o costume, eu acho.
– Que costume, colega? Você acabou de ser ligado…
– É que tivemos uma presidenta tanto tempo… demora até carregar as
novidades – a mão dele pesava no meu ombro.
Ok, companheiro, mas não precisa me apertar desse jeito. – reclamei,
enquanto tentei empurrar o braço dele.
– Quem está apertado é o Coritiba, que precisa vencer o vice-líder
Palmeiras e ainda torcer por uma vitória do rival Athlético para se safar da
zona de rebaixamento, faltando três rodadas para o fim do Brasileirão.
– berrou o âncora, em tom de brincadeira, enquanto me segurava com
ainda mais força.
Me larga! AGORA! – me desvencilhei da mão mecânica com um
solavanco, incomodado tanto pelo contato físico forçado quanto pelo fato
de que ele repetiu as mesmas palavras que li no teleprompter da segunda
edição de sábado do jornal.
ATENÇÃO. NÃO REMOVA O DISPOSITIVO ENQUANTO… – não
esperei para ouvir o restante do que a voz metálica dizia e corri para fora.
Saí do estúdio aos tropeços e, mais uma vez, toda a redação olhou para
mim, mas agora a expressão não era de pena, mas sim de medo. Zélia
parou na minha frente, apontou para o meu ombro boquiaberta e só
então vi que havia uma mão robótica agarrada no meu paletó, cerrada,
quase que rasgando minha roupa. Também gritei apavorado e dei um tapa
para tentar soltar aquilo. Não deu. E o pior: minha camisa estava toda
manchada de alguma meleca que saiu do pulso decepado do âncora.
Pronto, agora, além de tudo, havia danificado o patrimônio da
empresa. Pensei no meu acerto indo pro lixo enquanto corria para o
banheiro para me lavar. O Walter veio correndo atrás.
– Cristovão, tudo certo aí?
– Walter? Me ajuda aqui, por favor! Não consigo tirar esse treco do
meu braço!
Ele entrou com passos lentos e trancou a porta atrás dele.
– Que é isso na sua camisa? Parece sangue!
– É sangue de robô, companheiro. Uma graxa rosa que saiu do pulso
dele. Agora me ajuda a tirar esse troço.
– Não sai nem a pau. Já tentou tirar o paletó?
– Não consigo! Agarrou mesmo! Preciso de um alicate ou algo assim!
– Tá doendo?
– Muito! Meu Deus, que eu faço?
Nesse momento alguém bateu na porta com força e nós dois olhamos
assustados.
– Cristóvão? Walter? É o Márcio, da tecnologia. Abram a porta.
Aliviado, destranquei a maçaneta, mas, quando abri, vi os cinco meninos
da técnica com tasers apontados para mim. Eles pareciam assustados.
– Ferrou! Ele arrancou o braço do Cristóvão, veio com defeito esse…
– Ei! Calma aí, eu sou o Cristóvão, essa é a mão daquele robô que
vocês não instalaram direito!
Um dos meninos disparou o taser. Passou longe de mim, mas deu pra
entender que o pessoal de exatas é tão bom de diálogo como de mira.
Mesmo com meu vigor debilitado pela idade, consegui saltar no meio
deles e, depois de uns empurrões, estava escorregando pelo corredor.
Gritei pelo Walter, mas foi tarde demais: os magrelos fritaram o velho
guerreiro com os tasers e ele desabou duro, berrando de dor.
Sem pensar racionalmente, continuei correndo pelo prédio da rua
Esperança, perseguido por jovens que tinham um terço da minha idade,
mas o preparo físico de quem só fica sentando de frente para uma tela o
dia todo.
Tentei abrir a porta que levava ao refeitório na garagem do prédio, mas
estava trancada. Me esgueirei, então, para o estúdio 3, um salão gigantesco
que estava em obras para a criação da redação convergente: jornal,
TV, rádio, revistas e site, todos em um imenso estúdio aberto de dar inveja
ao Jornal Nacional.
Só que, com a crise do impresso, o desinteresse pelo rádio e os processos
trabalhistas que os meninos preguiçosos do site enfiaram na empresa,
o projeto parou no meio, e o lugar tinha virado uma espécie de depósito
de tranqueiras. Entrei tropeçando em uma pilha de fitas betamax e, se não
fosse o desespero da situação, teria até ficado com saudades dessa época.
Ouvi os passos acelerando no corredor e me apressei para esconder
em uma montanha de monitores de tubo dos computadores antigos da
emissora. Logo em seguida os caras da técnica chegaram, esbaforidos.
– Ele entrou por aqui, certeza! – não conseguia vê-los, mas ouvi
enquanto vasculhavam o estúdio antigo.
– Thiaguinho, olha perto daquelas Olivettis. Márcio, confira aqueles
sacos de cimento!
O chefe gritava ordens de comando como se fosse um capitão do
bope, mas nem passou perto do meu esconderijo. Aproveitei para tentar
mais uma vez tirar aquela mão estranha do meu ombro. Depois de muita
insistência, ouvi um clique, e a pressão aliviou. Só que com o tranco,
escorreguei e sai dos monitores para cair no meio de outro amontoado de
trecos. O desleixo não passou despercebido.
EI, CHEFE! Achei aqui! – um monte de lanternas veio na minha
direção e fiquei paralisado. O tempo pareceu congelar enquanto meus
algozes me examinavam.
– Putz, Thiaguinho, que achado hein, cara? – o líder gargalhou em
deboche, sendo seguido por todo o bando. Observei em choque as risadas,
e eles deram as costas, do nada.
– Ele não deve ter entrado aqui… vamos abrir um chamado no sistema
e depois encontramos. Sério, depois não sabem por que a empresa está
quebrada, olha o nível do equipamento.
O grupo saiu do estúdio e fiquei lá, atônito. Olhei para o lado na
escuridão e só então vi no que estava metido. Âncoras, dezenas deles,
descartados na poeira como bonecos antigos. Tinham meu rosto, meu
corpo, meu terno azul escuro e o nó de gravata que era praticamente
minha marca registrada.
Não tornei a apresentar o telejornal desde então. Meus dias no
jornalismo chegaram ao fim. Ninguém tem saúde para durar nesse
trabalho por tanto tempo assim.
Pensei em me mudar para o interior da Bahia e abrir a pousada que
tanto sonhava, mas preferi dedicar um pouco de tempo escrevendo
minhas memórias, na companhia de uma saudosa Olivetti. Isso enquanto
as lembranças ainda estavam frescas. Isso enquanto não me descobrissem
escondido no estúdio 3.