A amendoeira
Marcos Marciano
Em uma das mãos eu carregava a sacola com o naco de manteiga. Na outra, fechada com força, não deixava escapar o sorriso que Juju me deu. Vou sim, eu disse, hoje eu vou sim. Já sabia sobre a festa desde o início do mês. Era impossível não saber com tantos cartazes colados em muros, com o pessoal fazendo daquilo o único assunto na escola. A maior festa do ano, os melhores funkeiros e as melhores músicas. Eu já sabia sobre o baile, mas só tive a confirmação de que ela iria ali, na calçada, quando fui buscar a manteiga para minha mãe na casa da tia Ana, minha madrinha e mãe de Juliana. Você vai, Nael, ela perguntou. A amiga ao lado abrindo demais a boca para mascar o chiclete, me encarando, e eu disse que sim, que hoje iria ao baile. Juju sorriu.
Caminhei os poucos passos até o meu portão dando a entender que estava suave, bem tranquilo. Somos vizinhos de muro. A sacola balançando e batendo na coxa não ajudava, eu parecia um imbecil. A amiga devia estar me fuzilando a nuca com os olhos, rindo baixo, quem sabe, eu não conseguia ouvir nada além dos meus chinelos e das investidas do plástico contra minha perna. Contudo, encontrá-las na calçada foi um alento. Não vi Juju enquanto fazia as vezes de emissário e convidava a dinda para comer milho-verde com manteiga. Não a vi, mas senti o perfume, escutei as risadas vindas do quarto, dela e da amiga. Demorei-me com o suco de caju oferecido pela tia Ana, sempre tão carinhosa, atento a qualquer barulho que indicasse a súbita aparição daquele par de olhos amendoados na porta da cozinha. No entanto, ele passou rápido pelo corredor, indo para a rua, no momento em que a madrinha perguntava sobre as minhas aulas de bateria na igreja.
Um alento encontrá-las, sim, e uma boa decisão os grandes últimos goles do suco, pois pude alcançar as duas e notar que já estavam semiprontas, com blusinhas soltas e brancas, shorts jeans parecidos, ambas com brincos gigantes de argola. Talvez faltasse apenas a maquiagem para Juju, aquelas sombras e brilhos e o batom vermelho.
Cheguei às grades pretas do portão de casa e, ainda suave, despretensioso, arrisquei olhar para onde elas estavam, quem sabe para retribuir o sorriso e reforçar o combinado. Então, as luzes do final da tarde de domingo, filtradas pela copa da amendoeira em nosso quintal, me jogaram em um passado não tão distante. Eu e Juju sentados à sombra da árvore, pintados de batom e nos escondendo da minha mãe. Tão linda a luz entre as folhas, tão linda a Juju borrada de batom vermelho, lambendo os dedos para limpar os excessos rubros nos cantos da minha boca, aos risinhos, aos pedidos de confidência. Juliana não recebeu minha retribuição, porque já estava de costas rumo à esquina de nossa rua, sua amiga saltitando e misturando passos de forró com os de funk. Abri o portão na sequência e entrei. Chutei algumas amêndoas secas para perto do muro entre as casas, lá onde Juju e eu brincávamos, e acertei duas no tronco da árvore. Daí segui para a cozinha.
O apito da panela de pressão cheia de milho-verde era a aura da presença da minha mãe naquele cubículo escuro e quente. Todas as casas do bairro eram parecidas, a mesma disposição de cômodos, telhados idênticos, mas acho que as residências devem mesmo ter o temperamento semelhante ao de seus donos. Se a cozinha de tia Ana era clara e arejada, lá em casa os pequenos retângulos de vidro da janela mal deixavam entrar a luz que passava pela amendoeira. Sua madrinha vem comer comigo, minha mãe perguntou, os braços cruzados, o quadril apoiado na pia de granito, e eu só balancei a cabeça confirmando. Ela falou algo sobre a chuva que estava se formando e arrancou a sacola com a manteiga da minha mão. Perguntou também sobre a vinda de Juju, mas afirmou na própria pergunta que a garota não viria, daquele jeito de sempre, naquele tom que usava antes de me bater por causa das brincadeiras com maquiagem no passado. Juliana não deveria estar caçando rua nessa idade, ela disse, tem é que ir com a gente amanhã no culto, rever os pastores e voltar a cantar. Juliana jamais voltaria à igreja conosco, pensei, porém seria inútil argumentar. Minhas mãos estavam suando como os azulejos perto do vapor da panela. Murmurei que ia para o quarto e saí da cozinha calorenta, passei pela sala e pelo pequeno corredor. Antes de virar à direita para o meu quarto, olhei para esquerda, para a janelinha do banheiro que encimava a privada.
Entrei, tranquei a porta e me deixei cair na cama ainda desarrumada, afundando o rosto no travesseiro. Vou sim, eu disse, hoje eu vou sim, e Juju sorriu. Apertei mais a mão onde guardei seu sorriso. Lembrei-me de mais batons, algumas bonecas e uns selinhos bobos imitando as novelas, porque ou era isso para tomar coragem ou me conformar com os mesmos cumprimentos protocolares na escola e na rua. Virei-me com a barriga para cima e encarei o teto na penumbra, respirei fundo, sentindo notas de manteiga derretida no ar e estiquei o braço até a mesinha de cabeceira.
Empurrei a bíblia e outros papéis até encontrar o panfleto. O Baile Branco. Venha de branco. Eis o porquê de estarem com as blusas tão parecidas. Nomes de pessoas famosas que eu não conhecia e o horário da festa. Ela sorriu para mim, pensei, e a imagem da última espiada pelo muro, de Juliana ajudando a mãe com as roupas no varal, brotou em minha mente. Um lençol branco dançando ao vento mostrava e escondia a menina descalça, saia curta desbotada e uma regata que mostrava as curvas laterais dos seios a cada pregador colocado.
Fugi do devaneio e enfiei o panfleto em um dos bolsos de trás da bermuda. Peguei a carteira dentro da gaveta da mesinha e a botei no outro. Tirei a camisa velha que estava usando, renovei o desodorante e me abaixei para pegar os tênis debaixo da cama. Acendi a luz do quarto e torci para encontrar aquela camiseta branca. Dei uma, duas batidas pelos cabides, revirei os nichos e não a encontrei. As roupas passadas na lavanderia, pensei. Apaguei a luz e, então, escutei a voz da dinda, aquele vozeirão de quem anuncia que chega e sabe que é bem-vinda. Destranquei a porta e garanti que ela ou minha mãe não estavam à vista. Escapuli sorrateiro, com os dois tênis na mão do sorriso e fechei outra vez a porta do quarto. O cheiro morno de milho e manteiga impregnava a casa.
Alguns leves passos depois e cheguei até a lavanderia no final do corredor. Poderia sair por ali, pela porta dos fundos da casa, no entanto só minha mãe tinha aquela chave. Escorei-me na borda do tanque para calçar os tênis, ao mesmo tempo em que corria os olhos pelas pilhas de roupas limpas em cima da máquina de lavar e da tábua de passar. Não identifiquei a camiseta entre as roupas dobradas, então, quando dei o último laço no segundo tênis, desbravei o amontoado de calças, cuecas e saias longas recendendo a amaciante até achar a bendita toda amarrotada e com as mangas esgarçadas. No corpo ela desamassa, profetizei. Coloquei a peça o melhor que pude no cós da bermuda e voltei para o corredor, redobrando os cuidados para o atrito dos tênis com o piso não me denunciar. A dinda ria do que minha mãe falava, e escutei o som de pratos e talheres. Minha mãe logo ia bater na porta do quarto para me chamar. Só vi o quanto as palmas das mãos estavam suadas de novo quando toquei a maçaneta da porta do banheiro. A janelinha sobre a privada parecia menor do que antes. Fechei a porta e um arrepio subiu pela coluna com o estalo produzido pela lingueta. Por alguns instantes esperei meu nome da boca de uma das mulheres, contudo só os talheres se fizeram ouvir da cozinha. Senti o coração nas têmporas quando o reflexo que me olhou de volta do espelho sobre a pia não estava confiante.
A chuva que minha mãe anunciou mais cedo começou a cair bastante forte. Joguei um pouco de água da torneira no rosto e me sentei na privada, contando o intervalo cada vez maior entre as gotas que pingavam do meu queixo. Escutei os passos da minha mãe, mesmo com a chuvarada, e quase aceitei os cumprimentos protocolares na escola e na rua para todo o sempre. Do banheiro escuro divisei as sombras de seus pés pela fresta inferior da porta fechada. Imaginei-a olhando pelo buraco da fechadura do quarto, bem ao estilo dela, talvez uma orelha colada na madeira, a mão em concha para ajudar o ouvido. O fato é que não me chamou, deve ter assumido que eu estava dormindo. Não me chamou e nem estranhou que a porta do banheiro também estivesse cerrada. As sombras sumiram, e logo o rumor das vozes das duas na cozinha retornou.
Fiquei de pé e mirei a janelinha com o ânimo renovado. Minha cabeça passaria fácil, o difícil seria atravessar os ombros e não me arrebentar no quintal do outro lado, mas era possível. E a chuva, súbita como veio, também foi embora, havia apenas os últimos raios de sol da tarde me convidando a escalar a pequena abertura. A mão, a do sorriso, tomou a iniciativa e escancarou o basculante. Apoiei um dos pés na borda da privada e tive relances de memória sobre acidentes com pessoas que fizeram algo parecido com o que eu estava inventando, cortes profundos causados pela porcelana que se parte pelo peso excessivo, só que em pouco tempo já não precisava do apoio perigoso, pois estava com quase a metade do corpo para fora de casa, sentindo os pingos grossos e gelados que ainda caíam das folhas da amendoeira em minhas costas. A camiseta no cós da bermuda resistiu um bocado, porém, graças à resistência oferecida, consegui o tempo necessário de me preparar para a queda, e caí, meio que escorrendo pela parede molhada e sem reboco, ralando cotovelos e peito e barriga no processo.
Limpei as gotículas de sangue que minavam do peito e bati as mãos nas manchas molhadas da bermuda. A camiseta, por sorte, não se molhou. Fiz menção de ir até o portão, mas o barulho seria enorme. Analisei as imperfeições do muro e decidi que pularia para o lado de lá, chamaria Juliana, cochicharia como fazíamos debaixo da árvore, explicaria a aventura e tudo valeria a pena. A luz da cozinha estava acesa, mas a janela dos pequenos retângulos de vidro não permitia que quem estivesse lá dentro visse o que eu estava maquinando. Tirei algumas amêndoas de perto da base do muro, talvez as mesmas que tinha chutado para ali anteriormente, e pulei com os braços esticados, buscando o topo com as mãos. Aproveitei o tronco da amendoeira para tomar impulso usando uma das pernas e senti o peito arder quando apoiei o dorso na crista do muro. O calor da cozinha abafada da minha mãe apareceu sem ser convidado quando pulei para o outro lado e pousei em meio às amêndoas maduras que pintavam o quintal da dinda de vermelho. Meu coração ribombava. Calma, Nael, eu disse para mim mesmo, o pior já passou.
Mas mesmo assim o calor e o coração exagerado me acompanharam até a frente da casa da dinda. Lá, tirei a camiseta do cós e limpei algumas manchas de poeira molhada deixadas pelo muro antes de vesti-la, nada que pudesse macular a condição de entrada para o dito Baile Branco. Alisei-a no corpo e aproveitei para passar também as mãos nos joelhos e cotovelos arranhados. A porta da cozinha estava fechada, o que era incomum quando havia pessoas em casa. E se Juju não estiver mais aqui, pensei. Era bem provável que a ansiedade saltitante da amiga não aceitasse atrasos e elas já tivessem pegado o caminho para a festa. Girei o puxador e a porta não se abriu. Contornei o terreno tentando perceber algum movimento lá dentro pelas janelas fechadas, entretanto as cortinas e as luzes apagadas me impediram de enxergar muita coisa. Tudo apontava para minha volta derrotada ao milho com manteiga em casa ou para uma trajetória solitária e ousada até o local do evento. Se eu correr, pensei, às vezes consigo alcançá-las antes que cheguem lá. Saquei o panfleto do bolso para conferir o endereço e segui, já nos fundos do lote onde a dinda mantinha alguns pés de vinca e duas roseiras. Foi quando escutei o riso abafado vindo da porta da lavanderia entreaberta. Juju, falei, a voz saindo pouco mais alta que um sussurro, é o Nael, Juju. Ninguém respondeu. Resolvi entrar.
A lavanderia da madrinha era mais organizada do que a nossa, mesmo naquele início de escuridão dava para afirmar. Fui chamar por Juliana outra vez e me contive quando uma réstia de luz cálida surgiu na parede do corredor. Caminhei para lá, com cuidado, suave, sentindo o calor da cozinha lá de casa subir pelo peito e estacionar em meu pescoço, turbilhonando, feito as sombras distorcidas das estrelas e pequenos foguetes que rodopiavam, com certeza as crias da luminária giratória que dei para Juju de presente em seu penúltimo aniversário. No antepenúltimo, aliás. E sorri, confesso, o sorriso perfeito para devolvê-la depois daquele que guardei na mão. Talvez, pensei, a quentura não fosse a do cubículo de sufocamento da minha mãe, não, talvez se tratasse do
preâmbulo de um abraço, quem sabe até de novos risinhos e pedidos de confidências. Já no corredor, passei em frente ao quarto da dinda, onde os foguetes alcançavam maiores tamanho e velocidade antes de sumirem porta adentro, e acho até que deixei escapar o nome de Juju entre os dentes quando avistei a nascente da luz e das sombras adiante, no outro quarto, o seu, o defronte ao banheiro como o meu.
A cada passada eu desvelava um universo de saudade. Não me lembrava da última vez de estar com ela no cômodo, muito menos a sós em casa. Pude ver melhor a luminária giratória, depois os travesseiros altos recostados na cabeceira da cama forrada, o espelho de chão próximo à cortina cor de chumbo servindo de céu ondulado para as estrelas e foguetes em redemoinho. Então supus que poderia assustá-la caso irrompesse de repente no umbral da porta, esticando o pescoço sem aviso, vindo do escuro e do silêncio. Era minha intenção falar seu nome, empostar a voz de modo a soar seguro de mim, no tom exato que manifestasse tal determinação e ao mesmo tempo dissesse exatamente o que eu estava fazendo ali, mas algumas mudas de roupa jogadas sobre a cama, inclusive a blusinha branca, o requisito para o baile, travaram minha voz, mas não minhas pernas. Quando tive vislumbre de todo o quarto, no que pareceu um ano arrastado sob aquele batente de porta, vi o dorso nu da amiga se curvando sobre alguém, sobre ela, é claro, como que uma vampira sugando o pescoço de Juliana em um beijo ou algo assim. Os olhos amendoados de Juju emicerrados, a cabeça jogada para trás e a boca num sorriso, nossa, de puro torpor, eu acho, os braços caídos e meio tesos de entrega, os seios comprimidos contra os da outra moça.
Retrocedi alguns passos pelo corredor, invejando a habilidade dos foguetes de se misturarem com o breu ao meu redor. Acho que uma das mãos da amiga estava dentro do short desabotoado de Juliana, não sei ao certo. Provável que sim. Miniestrelas, não as feitas de sombra criadas pela luminária, mas verdes e brancas e vermelhas encheram a lavanderia da dinda e tive que me apoiar na máquina de lavar antes de sair para o quintal. Segui nas pontas dos pés pelo pequeno jardim da madrinha, não sei por quê, desviando dos frutos da amendoeira com um zelo descabido pelo resto do caminho até o muro. Os pontos coloridos se multiplicaram e percebi que não respirava direito desde o sorriso lânguido de Juju no quarto. Apertei as pálpebras com força e tentei reaprender a encher os pulmões de ar. Com certeza a mão estava dentro do short, pensei, ainda de olhos bem fechados, o movimento lento e circular dos quadris de Juju regendo o rodopio de estrelas e foguetes outra vez em minha cabeça. Abri os olhos, tomei fôlego e repeti o ritual anterior para pular de volta. Sem a ajuda da amendoeira para a subida, acabei forçando demais o corpo contra o topo da divisa entre os terrenos e o muro reclamou para si pedaços de pano e de pele. Já do outro lado, bufando, tirei a camiseta, outrora branca, e me encostei no tronco da árvore. Baixei a vista para o lado esquerdo do peito onde novas marcas de sangue brotavam da fileira de arranhões. Depois olhei para a minha mão, a do sorriso, e os pontos coloridos voltaram a aparecer. Do portão de grades pretas, lá na frente de casa, bocas e olhos mais abertos que de costume, minha mãe e dinda me encaravam, a segunda carregando a mesma sacola que eu usei para trazer o naco de manteiga, sem dúvida, com milho para Juliana comer quando voltasse do baile com a amiga.