A herança do meu bisavô
Leo Mascarenhas
1.
seu Demerval era sujeito ossudo
dado à pimenta e às cartas
um belo dum negro cafuzo de um e oitenta
que nos 60 foi motorista de bonde
motorista não, con-du-tor
gostava de dizer
com um orgulho de quem defende um doce pra comer mais tarde
subia a Pouso Alegre todo dia menos
segunda
até ser mandado embora e passar o resto da vida vendendo biscoitos pra
sustentar a família de oito filhos.
2.
quando velho
seu Demerval ficou sem os cabelos lisos e os dentes
e não ganhava de mais ninguém no buraco
seus mais de trinta netos
guardavam mais medo que respeito
os dentes do vô vão pular pra fora mãe
tem que colar
3.
nos 90 trombou com um dos netos na varanda
lendo O mistério do cinco estrelas da coleção Vaga-Lume
num tapa só tomou o livro e atirou na rua
o caminhão de lixo laminando aquele mistério no asfalto
essa merda num vai ti levá a lugá nium muleque
cê tem é que subi in árvore e aprendê a usá ferramenta
como teu pai
o menino ficou que era só confuso
4.
mãe por que o vô odeia livros
teu avô foi mandado embora do bonde por conta dum livro
ele tava lendo um livro de bonde
não
ele bateu no bonde com o livro
não
ele atropelou um livro com o bonde
não
mãe o que é um bonde
5.
dois de dezembro de 1961 foi um dia importante
a linha Pampulha é a mais chique
agora ela é minha
seu Demerval botou seu uniforme menos remendado
seu quepe amarelo
e lá se foi para um sábado glorioso
correr a Antônio Carlos
o bonde apinhado de gente
que não tinha jeito nem dinheiro para os esportes náuticos
6.
numa quarta a meio caminho do centro
quis subir no bonde um senhor carregado de livros
deitou tudo fora da sacola
tudo fora do trilho
seu Demerval esperando pra arrancar
mas nesse dia tinha um homem muito importante no bonde
muito branco muito advogado
arranca que eu tô com pressa
e seu Demerval
por algum motivo aquele dia
nada
arranca que eu tô com pressa
não ouviu não arranca que eu tô com pressa
ARRANCA QUE EU TÔ COM PRESSA, SEU PRETO DE MERDA!
silêncio todo mundo olhando
e seu Demerval
por algum motivo
justo aquele dia
nada
só depois qui o sinhô dos livro subí
ponto final
aquele disparate custou o emprego de seu Demerval
que em troca ganhou a empatia do senhor dos livros
e um exemplar dedicado
para o corajoso companheiro que me fez valer a viagem
– Abdias
7.
duas pontes de safena
e quarenta anos depois
seu Demerval morreu de infarto.
alguns filhos e netos fizeram pequeno mutirão
pra resumir-lhe os pertences e as memórias
no fundo de uma gaveta
o embrulho
um livro e um quepe amarelo
enrolados num pedaço de pano puído
e esse livro mãe
cê sabe que seu avô num era de ler
mas tava aqui nas coisas dele
que livro é
Dramas para negros e prólogo para brancos
tem até uma dedicatória nele
esse é o livro que selou o destino do teu avô
ele nunca leu
também nunca quis jogar fora
posso ficar com ele mãe
pode
mas vê se acha alguma camiseta que serve em você também
8.
quinze anos mais tarde
ganhei aquele livro velho do meu tio
Raimundo a função de ler nessa família agora é sua
faz dos livros o teu terreiro
acha teu bisavô que dorme nessas páginas
e sela teu destino.