Clarice mora aqui
Carolina Valverde
Joana gritava da cozinha, sem tirar os olhos do fogão.
– Dé, minha filha, sai da janela um tiquinho só, sai? A friagem tá cortante e você pode acabar pegando uma constipação daquelas. Seu nariz tá que escorre, despelando e vermelho por fora, de tanto que você fica passando a mão de baixo pra cima. Podia, pelo menos, usar um lencinho de pano, né? Que modos são esses? Nem parece que já é uma mulher adulta! Quer que eu pegue pra você? Está na sua gaveta de calcinhas, bem lá no fundo. Melhor seria se você mesma pegasse, senão o mingau vai grudar na panela. E é bom que aproveita e esquenta o corpo um pouquinho. Tá frio demais, menina! Olha lá o rosa no céu e a falta de estrelas. Minha vó sempre disse que, quando o céu fica rosa de noite, é sinal de frio bruto. Se você pegar uma lufada de vento pode até ficar com a cara torta, sabia? Nem sei contar o tanto de vezes que já te falei isso. Você acabou de tomar uma sopa quente, de pé, sem sair do lugar, na frente dessa janela aberta. Quase uma sopa de macarrão com sereno. Aliás, você está aí desde as sete. Cruz credo, gente! Deus que me livre! Já pensou se pega um resfriado com febre e tudo? Suas pernas não doem? Todo dia é isso. Todo dia. Não sei como é que aguenta.
– Como que aguento? Aguento o quê? Vou nada, Joana, vou pegar constipação nada. Como que fica com intestino preso de ficar na janela? É só quando como goiaba com semente mesmo. Só estou vendo Clarice. E aqui, ó, estou de meia contra varizes, aquela que o Dr. João pediu pra eu usar. Tenho que ficar de pé, senão não enxergo direito. A parede tampa. Pegar lencinho que nada. Limpo o nariz com a mão e limpo a mão na blusa. Que que tem? Sobre minha cara, ela já é um pouco torta e se eu pegar isso aí de vento que você disse às vezes pode acabar me consertando. Meu nariz não está vermelho nada. Vem cá pra você ver, vem. Ela está tirando a maquiagem e já fez até touca no cabelo. Toda noite ela faz. Tem noite que gira o cabelo todo pra direita e tem noite que é pra esquerda. Um dia você faz em mim? Touca? Acho que vou ficar linda. Igual Clarice. Eu vejo tudinho daqui. Ainda bem que enxergo bem de longe, né? No dia em que eu parar de enxergar direito você me arruma uns óculos? Acredita que sinto até o perfume dela? Sério! Juro que sinto. Mas só quando ela abre a janela, é claro. Um perfume doce como o mel! Hoje a camisola é longa e rosa-pêssego, igual àquela que você me deu no Natal passado. Lembra? Só não sei de uma coisa, Jô. Que horas será que ela escreve, hein? Nunca escuto barulho de máquina. Será que daria pra
escutar daqui? Acho que sim. Do mesmo jeito que sinto o perfume. Se bem que pode ser que ela escreva na sala, ou na biblioteca dela. Será que ela escreve à mão? Pode ser, né? Só pode. E sobre isso do céu ficar rosa, eu acho é lindo! – Gritava Adélia da janela, sem virar o rosto para trás. A cabeça ficava a um palmo à frente do peito. Os olhos quase saindo das órbitas. E o coração aos pulos!
– Ô, minha nossa senhora! Não é dessa constipação que eu tô falando! É gripe, menina! Ah, deixa! Tem jeito não. – Joana desiste.
Já eram dez da noite e Adélia permanecia lá no seu posto especial de observação desde as sete horas, com um livro de Clarice Lispector debaixo do braço, quando, então, a vizinha chegava e iniciava sua rotina noturna de tirar a maquiagem, pentear o cabelo, colocar camisola, enfim, se preparar para dormir. E olha que isso durava… das sete às onze. Não tenho mais conta de quantos anos isso já vinha se repetindo, de segunda a segunda. E essa história de viver com um livro debaixo do braço, grudado em seu corpo, era um pouco complicado, pois além de seus movimentos de braço daquele lado ficarem comprometidos, os livros estavam ficando amarelados e ondulados com o contato com o suor e o desodorante das axilas. Adélia parava tudo o que estava fazendo. Não podia perder uma ação sequer de sua escritora predileta. De sua vizinha famosa e adorada. Não era somente uma rotina. Rotina é de fora para dentro. Aquilo era mesmo uma necessidade. É como se Adélia fosse aquilo tudo. Adélia era o que repetia. E o livro em seu corpo. Como dizia Clarice, seu amante em seu corpo.
A pessoa que morava no prédio ao lado e que Adélia tinha a certeza absoluta de que era a própria Clarice Lispector, em carne e osso, era uma senhora que regulava em torno de uns setenta e cinco anos de idade, extremamente charmosa e vaidosa. Vivia com o cabelo de laquê, partido de lado e com topete de madame. As blusas eram de renda com uma certa transparência e sempre usava echarpes. As bolsas combinavam com os sapatos, e a maquiagem era fortíssima, mesmo quando ia à padaria. Um perfume doce e marcante – francês, com certeza. Estava sempre fumando. Segurava o cigarro de um jeito especial e soltava a fumaça como se fosse uma dança de mãos, dedos e fumaça. E isso tudo eu fiquei sabendo bem depois. Depois que a vi de perto pela primeira vez.
Adélia tinha mais certeza de que era de Clarice que se tratava do que de quando ela própria estava com fome ou com sono. Aquelas certezas decididas.
Tudo começou em uma tarde de agosto quando Adélia estava na janela da sala acompanhando, com os olhos fixos, uma pipa que fazia mil piruetas no azul. Por uma distração do olhar e capricho do inusitado, mirou a vizinha fumando, bem na janela de seu apartamento. Foi sem querer. Joana dizia que no momento em que essa menina descobriu a vizinha foi um momento inesquecível, até pra ela. As duas estavam sozinhas, como sempre, e Adélia ficou completamente catatônica, falando baixinho sem parar – Joana, Clarice. Joana, Clarice. Joana… Clarice. É ela! É Clarice! É Clarice Lispector! – Nada que Joana fez conseguiu tirar a menina do estado de estupefação e encantamento. E ficou lá assim, até ser levada para a cama, pois havia dormido de pé, debruçada no parapeito da janela. A partir do dia seguinte, pronto – o enredo vindouro estava definido. E com um livro debaixo do braço, como se fosse um membro de seu corpo. Até hoje Adélia acha que a pipa foi enviada por algo, que ela não sabia o nome, só para que descobrisse que Clarice era sua vizinha. Por toda a casa havia desenho de pipas. Nas paredes, nos blocos de notas, nos livros, e ai de Joana se desmanchasse algum. Como Adélia nunca acreditou em Deus, passou a acreditar em pipas.
Ela bem que merecia, aliás, precisava ter um mundo leve, pelo menos dentro de seus pensamentos lunares. Esses alívios que damos um jeito de pescar pela vida afora. É claro que ela preferia viver a vida da janela, de sua vizinha, dona de frases e palavras, porque a dela não havia sido nada fácil. Não era nada fácil. Não que alguma seja. Não. E, além do mais, Joana, que cuidava dela desde o nascimento, era idosa, cansada da labuta, sem família, bebia cachaça um pouco demais, tinha pressão alta, era muito pesada e já sem paciência. Os pais de Adélia morreram quando a menina tinha oito anos de idade. Foi naquele momento que, se é que o Deus das pessoas havia existido de alguma forma em suas divagações, deixou absolutamente o seu posto, quando ouvia para todo lado que Ele quis assim, que Ele sabia o que estava fazendo, e outras mil coisas que invadiram aquela cabeça de oito anos com a força de uma catástrofe. Seus pais eram professores na Faculdade de Letras, os dois, e o que ficou para a menina foi Joana e os livros – aos borbotões. Na casa tinha mais livro que prato, que copo, que comida. Livros e pipas desenhadas. E assim foi a vida das duas por trinta e nove anos.
Os pais de Adélia vieram da Rússia para o Brasil na juventude e, por isso, não havia parentes brasileiros. Joana realmente nunca poderia imaginar que sua vida ia virar o que virou quando chegou para trabalhar na casa dos professores. Herdou Adélia. É isso – herdou Adélia. Adélia e tudo o que tinha relação com aquela vida que parecia ter parado aos oito anos de idade. É que a menina ficou lá. Ficou antes da cena de morte dos pais. Não cresceu. Escolheu o minuto antes dos pais se despedirem dela para a viagem fatal. Escolheu ficar no tempo quando ainda não era órfã. Quando suas bases ainda não haviam virado de vidro. E, Joana, ficou lá. Absolutamente impossibilitada de outra escolha de vida que não fosse cuidar daqueles escombros. E de sua menina. Como se fosse sua filha que não pôde ter, porque, como dizia, nasceu com o útero seco. Havia sido abandonada pelo amor de sua vida por causa disso. Essa era a história que Joana contava em moto-contínuo.
E eu… eu ouvia e sabia de tudo, sempre. Meu apartamento é colado no delas. Minha janela é do lado da janela mágica da menina das pipas. Joana fazia faxina para mim uma vez por semana e, quando ela tinha que sair para ir à farmácia, supermercado ou padaria, eu ficava fazendo companhia à Adélia – essa quase não saía – somente para ir aos médicos ou dentista. Dizia que não podia sair porque, se encontrasse com Clarice, não saberia o que falar. Havia imaginado uma sequência enorme de frases possíveis, mas dizia que nenhuma palavra conseguiria corresponder ao que deveria ser dito. Não conseguiria encontrar o rumo das palavras. Nem acreditava que existisse. E penso que porque, também e principalmente, preferia ficar com a Clarice que ela imaginava. Que reinava em sua vida diuturna. Claro que ninguém do prédio acreditava que era Clarice Lispector a quem Adélia se referia, mas ninguém, ninguém tocava nesse assunto. Aqueles respeitos não combinados, silêncios compartilhados. Bengalas que possibilitam o passo. Cada um com a sua.
Tive a honra e o privilégio de ser aluna dos pais dela. Dos dois. Ambos lecionavam na área de Literatura Comparada. Silenciosamente me senti ocupada com a vida daquela menina após a tragédia. Como se fosse uma gratidão pelo que me ensinaram. Se sou quem sou, devo a eles também. E, além do mais, éramos vizinhas. Não tenho costume de fechar meus olhos para o que quer que seja que atice meu coração. E, além do mais, eu gosto de Adélia. Faz bem estar perto de quem não sabe construir maldades conscientes. Perto dela eu posso me descansar, ficar sem defesas. Não há mentiras ou tentativas de manipulação. Não aprendeu a conviver com atalhos invisíveis para se safar de combates interpessoais e sair por cima. Não quer ganhar de ninguém com argumentos. Com nada! Não pensa em ser melhor que o outro. Adélia é o que é. E é um privilégio ter uma fonte de inocência incorruptível por perto. Ela me ensina a ser melhor.
Sempre tive muita dúvida sobre essa suposta construção descabida de Adélia em relação à Clarice Lispector. Apesar de todos do bairro terem a certeza de que a menina vivia uma mentira a vida toda, eu, sinceramente, não tinha certeza era de nada. Nunca fui muito de certezas. Só não sei o que fazia com que eu nunca tivesse ido ao prédio onde a suposta escritora morava para tirar a prova dos nove. Tive vontade de fazer isso inúmeras vezes. Cá pra mim, acho que, assim como Adélia preferia fantasiar a vida da vizinha, eu preferia fantasiar a vida de Adélia. E tem mais. Muitas vezes
eu ficava pensando – como pode eu nunca ter encontrado, sem querer, com a Clarice de Adélia? E se isso acontecesse? E se fosse mesmo Clarice? Mas… e se não fosse? Como eu viveria com essa verdade desvelada sem contar para Adélia? E se eu contasse… o que aconteceria com essa vida que se mantinha nutrida pela relação entre duas janelas?
As duas, Joana e Adélia, cada uma em sua sabedoria única de ser, viver e conviver. Cada uma com suas estratégias, não contra, mas a favor de uma sobrevivência na lida com a realidade e suas mazelas, iam vivendo juntas no respeito, no aceite, na gratidão. Um dia após o outro. Aquelas montanhas de livros empoeirados por toda a casa, como se fossem túmulos espalhados de lembranças de seus donos. Joana já tinha desistido de mantê-los limpos. Era realmente impraticável. Aquela garrafa de cachaça amarelinha escondida na gaveta de pijamas de Joana. A vida de Adélia que começava às sete da manhã e acabava às sete da noite, quando então se voltava para a janela do prédio vizinho. As pipas desenhadas pelo apartamento. A pilha de livros de Clarice Lispector
nos dois criados ao lado da cama de Adélia, que já sabia, quase de cor, passagens de todos os contos e romances da autora. Sim, porque do mundo de livros que lá existiam, eram somente aqueles que ela lia, aliás, que ela devorava, como se se dessedentasse. Aquilo tudo fazia um sentido. Sentido para cada uma e para as duas, até que algo completamente indesejado aconteceu. E acho que ninguém imaginava que aconteceria, mesmo sendo tão óbvio e tão certo.
Naquele dia chuvoso e escuro de julho, Joana não acordou. Adélia chamou, chamou, mas não obteve resposta. A morte rondava novamente. Ela e seu silêncio cortante. Adélia conseguiu bater em minha porta. Eram sete e meia da manhã. Quando cheguei ao quarto de Joana, o corpo já estava frio, duro – assim como o sentimento de Adélia. Ela não esboçava nada, absolutamente nada. Ainda não podia imaginar o que aconteceria a partir da ida de sua Jô. Então, eu fiz. Eu fiz tudo. Tomei todas as providências cabíveis. Adélia foi ao enterro comigo. Perguntou-me se havia algum problema em entrar no cemitério com dois livros. Um para si e outro para colocar junto ao corpo de Jô. Ela tinha mais de um de cada título e não faria falta. E também porque não queria deixar Joana sozinha. Clarice lhe faria companhia. Eu fazia parte de seu mínimo universo. Agora era só eu e ela. Jamais imaginei que minha eterna solidão escolhida fosse ser rompida daquela forma. Respondi que não tinha o menor problema e que era uma ótima ideia. E fomos.
Não aconteceu velório algum. Não consegui achar ninguém da família dela. Não houve jeito e tempo. Gastei todas as minhas economias e não tinha a menor ideia de como faria dali para frente. Jô enterrada, coloquei Adélia em um táxi e voltamos ao nosso prédio e à nova e jamais cogitada vida. Durante o percurso, ela permanecia branca, muda, mole, não olhava para frente, mas também não olhava para trás. Mirava o dentro enquanto o chão era seu alvo. Porém, aceitava minha mão na sua. Saímos do táxi e, enquanto eu procurava a chave do portão de entrada, ouvi um estrondo de queda de corpos atrás de mim.
Minha visão foi a de uma senhora se levantando e tentando ajudar Adélia. A pessoa tropeçou na calçada e caiu de todo tamanho em cima dela, que não a viu por estar com os olhos no chão. Não se sustentou por estar completamente apática. A senhora se recompôs, ajudou a erguer Adélia, arrumou o cabelo, limpou suas roupas, levantou o queixo dela, olhou bem nos olhos e, quando olhei para o rosto de minha vizinha, o resto de cor que habitava suas bochechas desapareceu por completo. Ela estava quase transparente, com os olhos estatelados e um meio sorriso nunca antes trazido à tona, no canto esquerdo da boca. A única coisa que Adélia fez foi pegar o livro que caiu na calçada e o guardar rapidamente dentro de sua blusa. E então ouvimos.
Nós duas.
– Meu Deus! Querida, peço mil desculpas. Estava em outro mundo e não vi o buraco. Você se machucou? Qualquer coisa que precisar é só me dizer. Moro no prédio ao lado, apartamento duzentos e um. Qual o seu nome? Prazer, me chamo Clarice.