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Mentols

Renata Ferri

– O que a senhora está fazendo na rua a essa hora? – O policial perguntou a Marisa, que caminhava magra e curvada pela calçada da avenida enquanto fumava um cigarro cuja fumaça aparecia ainda mais por causa do hálito quente soprado no ar frio.
– Não está vendo? Trouxe o Pompom para passear. – Disse apontando para a coleira imaginária de um cão inexistente. Era piada, mas os da viatura não entenderam assim. A velha só poderia estar em meio a um surto de Alzheimer, perdida pela cidade. Pararam o carro e a seguraram delicadamente pelo braço.
– Onde a senhora mora?
– Logo ali na rua 13.
– Vamos te levar pra casa.
Marisa não relutou, achou-os gentis, afinal, tinha saído justamente em protesto pela falta de educação dos familiares que tinham ido visitá-la.
Era domingo, aniversário de 12 anos do bisneto Dudu. A família resolveu se reunir na casa de Marisa não porque era o desejo de todos cantar parabéns com o bolo e os doces na mesa comprida ao redor da qual filhos e netos já tinham cantado tantos parabéns ao longo das décadas, mas porque ela tinha uma empregada que ia aos domingos e assim ninguém precisaria lavar louça. Ninguém levou bolo porque Dudu era diabético desde nascença. Colocaram a velinha em um empadão de frango. Depois de comer, ninguém sequer levou o prato à cozinha.
Deixaram tudo lá sujo em cima da mesa para a empregada catar, igual cachorros. Depois, Amelie, a irmã mais nova de Dudu, de 6 anos, subiu em uma cadeira e pulou lá de cima balançando os braços, para brincar de voar, e acabou quebrando um jarro de porcelana pintado à mão pela própria Marisa. Era lindo o vaso, ilustrado com copos-de-leite (a flor) e borda de ouro. Os pais e avós das crianças bebiam cerveja, mexiam no celular e dormiam no sofá. Não tinha outras crianças.
– Precisei caminhar para fumar. Não me deixam fumar nem na minha própria casa, os malditos. Dizem que dá câncer, que dá problema, que fede. O meu cigarro não fede, é mentolado.
– Quantos anos a senhora tem?
– Cinquenta e dois. – Ela parecia ter pelo menos oitenta e dois.
Pararam em frente à casa da rua 13 e os guardas acompanharam Marisa até a porta. Ela vasculhou a bolsinha a tiracolo, que era minúscula, mais ou menos do tamanho de um envelope de cartão de aniversário, em busca da chave. Encontrou, abriu a fechadura sem a dificuldade que a escolta esperava.
– Obrigada, queridos, tchauzinho. – Ela ia fechar a porta, mas um dos homens impediu, colocando a bota na frente.
– Só um minuto, Dona Marisa. A senhora tem que chamar alguém aqui para assinar os papéis.
– Que papéis?
– Toda vez que a gente leva alguém pra casa na viatura, temos que apresentar esses documentos assinados aos nossos superiores. Imagine só, se não fosse assim, alguns iam passar o turno todo dando carona para os amigos.
– Entendi. E eu não posso assinar?
– Não pode. Tem que ser alguma outra pessoa da casa, como se fosse uma testemunha, sabe?
– Um minutinho então.
Os dois policiais não tinham combinado nada, mas se entreolharam com cumplicidade. Balançaram a cabeça em sinal afirmativo, esticando a sobrancelha como se dissessem: “Olha só, vai dar certo.”
– Por que não pediu logo para a velha?
– Não sei, lembrou a minha avó.
Chegou na porta a Vênia, essa sim com cara de cinquenta e dois, que era a filha mais nova de Marisa. Cabelos loiros ondulados, corpo de quem vai na academia e faz dança de salão, sandália de salto, dentes muito amarelos. Encostou no batente da porta, com a mão na cintura.
– Boa tarde.
– Boa tarde, dona. Sou o soldado Gomes. A senhora sua mãe foi achada em uma situação de risco, andando desnorteada pela Avenida das Torres, quase foi atropelada. Sinto muito, mas alguém tem que se responsabilizar e você vai ser acusada de abandono de incapaz.
– Meu Deus, que horror, eu nem vi que ela saiu! Mas ela está bem, não aconteceu nada. Daqui para frente vamos tomar mais cuidado.
– Tomara que tomem mais cuidado mesmo, mas isso não é o suficiente para cancelar o processo.
– E o que eu tenho que fazer?
– Tudo o que a senhora disser pode e será usado contra você em um tribunal da lei.
– Só um minutinho, moço. – Vênia foi correndo falar com o marido.
– Não era para você ter falado o seu nome, Gomes.
– Não seja idiota, está escrito aqui na nossa farda. É melhor falar logo para ninguém ver que a gente está de falcatrua.
– E o que foi isso que você falou, sobre tribunal?
– Nunca viu eles falando isso nos filmes? Sempre quis dizer também.
– No Brasil não tem isso, velho.
– Ah, eles não vão saber.
Lá dentro da casa, Vênia cutucou Ilmar, que cochilava.
– Amor, temos que dar um dinheiro para os policiais.
– Que policiais, mulher?
– Os que trouxeram mamãe, ou então vão me prender. Deve ser verdade, eles usaram umas palavras muito técnicas, coisa que eu ouvi no jornal da televisão.
– Deixa que eu cuido disso. – Ilmar foi até a porta.
– Tô entendendo que vocês querem um cafezinho, certo?
– Acho que um cafezinho resolve o problema sim. – Disse logo o outro que não era o Gomes, pois queria pegar a grana e sair logo dali antes que o colega falasse mais bobagem.
– Vou pedir para a empregada passar então. Vamos entrar.
– Não podemos entrar, senhor. Estamos de serviço.
– Olha, vocês têm que concordar comigo que aqui na porta não dá pra trazer café. Vocês vão ter que entrar e esperar. – Deu uma piscadela.
Mesmo sem entender se eles receberiam dinheiro ou café de verdade, os dois entraram. Ficaram de pé na frente da porta da cozinha. Ilmar pediu à empregada, suada diante da pilha de pratos, copos e talheres sujos, que colocasse água para ferver e foi lá para dentro, no quarto, procurar Marisa e pedir dinheiro para dar aos policiais. Todos que estavam na casa olharam assustados para os dois intrusos, e Amelie perguntou se podia segurar o revólver de um deles. Permaneceram sérios e ignoraram a menina.
Uma porta perto do corredor se abriu e Marisa saiu do banheiro.
– Vocês ainda estão aqui? Se tivessem deixado eu assinar, não demoraria tanto.
– Onde está o seu filho, senhora?
– Não tenho filho, só filhas.
– Eles estão falando do Ilmar, mamãe. Ele já vem. – falou Vênia, tensa.
– Isso aqui está virando palhaçada. Se ele não aparecer logo, vou ter que levar alguém preso.
– Meu pai vende bomba, moço. Não era para eu contar, mas ele me bateu quando eu quebrei o vaso da vovó. – Revelou Amelie, para aplacar a ansiedade dos policiais.
– Seu pai é o Ilmar?
– Não, é aquele ali, Cristian.
O pai da menina, que até então estava anônimo no canto da sala trocando mensagens pelo celular com os clientes para quem vendia anabolizantes, achou estranha a presença dos policiais, mas não imaginou que a história poderia voltar-se contra ele tão rápido.
– Menina atrevida! Não é verdade, é só bobagem de criança.
O Gomes arrancou o celular da mão de Cristian e leu algumas mensagens.
– Parece que vai ter mesmo prisão hoje, compadre. – Disse para o companheiro.
– Deixa eu ver. – O não Gomes avaliou o conteúdo. – É, rapaz, a coisa ficou feia.
– Tá bom, tá aqui. – Cristian pegou a carteira na mochila que estava atrás do sofá, de onde tirou mil reais e entregou. – Vamos esquecer.
– Tem que ser mil pra cada.
– Só tenho mais 400. – mostrou a carteira vazia depois de tirar mais quatro notas de cem.
– E as bombas, tem bomba aí?
– Cristian entregou a mercadoria que estava dentro da mochila, umas ampolas com o líquido que seria injetado nos músculos dos fortões.
Os policiais foram embora sem se despedirem. Cristian arrastou Amelie para o quarto, para apanhar mais e ficar de castigo. Marisa ficou tonta e quase desmaiou. A empregada pegou uma cadeira para ela e foi buscar água. Gisele, mãe de Amelie e Dudu, e esposa de Cristian, se aproximou da mãe com a cara apática de sempre e ofereceu um comprimido calmante.
– Toma isso, mamãe, a senhora vai se sentir melhor. Quanto estresse hoje. Já tomei dois.
– Eu não vou tomar esse remédio doido não, vai que depois eu morro?
Deixa eu fumar, por favor!