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Vira-mundo

Ingrid de Paula

A patroa chamou de folga, sem remuneração. Passou 15 dias na Itália e dispensou qualquer serviço doméstico. Queria economizar: de onde se tira a carne, também se tira a ciabatta. Maria Eugênia ficou preocupada, pois uma quinzena sem receber era metade do salário. Não reclamou, era sim senhora pra cá, sim senhora pra lá. Podia levar a filha para o trabalho, menos uma refeição para dar. A filha tinha 5 anos apenas, não ia à escola ainda. Ficava preocupada. E muito. Uma preocupação sem fim. Uma vez viu o patrão vendo coisas estranhas no computador. Sentiu um aperto no coração, um enjoo, uma ânsia. E ele? Percebeu e, em resposta, deu-lhe um sorriso. Naquele dia não conseguiu comer nada. Só pensava na filha. Tentou colocar um pedaço de pão na boca, mas aquela pequena massa aumentava de tamanho e aumentava e aumentava. Era impossível digerir aquilo. A menina ficava o tempo todo na saia da mãe, era tida como mal-educada pela patroa.

– Que criança nojenta. Essa raça não tem bons modos, não quer brincar nunca com Ângelo. A gente tenta ajudar e é assim que essa mulatinha agradece.
– Desculpa, senhora. A menina é acanhada…

Aquela conversa foi bem no âmago da mulher, “mulatinha”. Ficou ressoando aquele termo, saindo daquele jeito. Não sabia exatamente o que significava, mas sentiu e doeu, e como doeu. As palavras são como chicotes e, quando usadas, podem de novo colocar no tronco. Sentiu a mesma sensação do bisavô quando era preso ao vira-mundo. Pensou que preto só era livre quando morria. Viu o mundo girar.

– A patroa viaja amanhã. – Sussurrou baixinho tentando acalmar seu coração.

Acordou cedo no outro dia. Era tanta preocupação, tantas perguntas, que Maria Eugênia era uma interrogação pura, quando grávida, um cavalo marinho. Não sabia o que fazer naqueles 15 dias, conseguiu alguns bicos de faxina, recebia 40 reais ao dia, sem a passagem, mas o que podia fazer? Cursou até a quinta série, mal lia e escrevia. O estudo pode esperar, mas a fome? Sorrateira, chegava e não esperava nunca. Pegava o ônibus lotado, atravessava a cidade, a filha sempre na saia. Com cinco anos a menina ainda não falava muito, não tinha dinheiro para levar ao médico
e sempre perdia o dia de marcação de consulta no posto. Não por desleixo, mas cada dia que faltava era menos 40 reais. Para marcar consulta, um dia só. Se você não puder ir, espere até o mês que vem. A menina crescia e, em breve, não poderia passar mais por baixo da roleta. Outra preocupação.

E assim se sucedeu nos dez dias seguintes. Sentia um alívio de não ficar em casa, o marido era daqueles. Desde que não faltasse a cachaça…

Maria voltava só para dormir com a menina e saía bem cedo de novo. Mas aquele dia era domingo, hora de faxina no barracão.

Do lado de fora, que era quase dentro, um carro de som passava na favela. Era de seu Ladislau, o chefe de Estado do Morro.

Diante da nova pandemia mundial, pedimos a todos que, se você puder, fique em casa. O covid-19 é um vírus altamente contagioso e oferece risco de vida para pessoas asmáticas, idosas e com demais doenças respiratórias. A melhor medida é o isolamento social. O coronavírus ainda não tem cura e tratamento específico. Lave bem as mãos e, se você puder, fique em casa,
fique em casa…
Se você puder, fique em ca…
Se você puder, fique
Se você puder…

Aquilo ia subindo morro afora e ressoava nas frestas de madeiras daquele lugar. Era como se o som saísse dali de dentro.

Seu Ladislau quando jovem era chamado de Bené. Não havia quem não gostava dele por ali, exceto a polícia. O homem favelizado não permitia roubo, se alguém precisava de gás, ele arrumava. Carro para levar ao médico estava sempre de prontindão. Na venda, deixava pegar fiado e pagavam depois. Favelado é honesto. Vezes e sempre algum político queria negociar com ele, mas cabra nordestino não se criava com essa gente, colocava para correr. Por ali, muita política e quase nenhuma politicagem. Bené era bom, mas também muito temido. Certa vez, um homem de má-fé roubou muito a vendinha da torneira de baixo, no outro dia amanheceu furado de bala, eram tantas que mal davam para contar. As crianças só queriam saber das cápsulas, quanto leite daria
para comprar. Bené decepou a mão do bandido e a pendurou na venda. Ninguém sabe, ninguém vê.

Maria Eugênia, ouvindo aquele chamado, pensou que até a informação eles tiravam dos favelados. Há quanto tempo aquilo estava acontecendo? Não tinha tv em casa, não comprava jornal, não tinha rádio. Vivia para comer e comia para viver. Já não bastassem tantas preocupações, agora mais uma.

Pouco depois, alguém batera à porta, era a assistente social. Trouxera consigo um panfleto com mais informações sobre o vírus e modo de prevenção. Explicara que era uma doença que veio de fora do país, que se iniciara na China, espalhara-se pela Europa e chegava agora ao Brasil.

A moça continuava a falar. Disse que os ônibus teriam o horário reduzido, que o comércio não essencial estaria fechado a partir de amanhã, que as escolas não tinham aula há uma semana. Maria Eugênia estava estarrecida, nunca tinha recebido tamanha instrução na vida. Entrou em um devaneio tão grande e nem viu quando a mulher saiu de seu barraco em direção ao do vizinho. A mulher só pensava:

Se você puder, fique em casa, fique em casa…
Se você puder, fique em ca…
Se você puder, fique
Se você puder…

Fechou a porta. Chorou e chorou e chorou.

Praguejou contra a vida. Praguejou contra Deus. Porque ela haveria de passar por tanto sofrimento? Antes esperava uma hora por cada ônibus, e reduziram o horário. Quanto tempo ficaria mofando com a menina que mal falava? Sentiu ódio. Há muito pensava em tirar a própria vida, mas e a filha? Se não fosse por ela, estaria a sete palmos do chão. Eram sofrimentos ancestrais acumulados.

Antes de dormir, fez uma prece rápida: que a patroa voltasse bem, pois precisava trabalhar. Que a considerasse como serviço essencial. Não sabia bem o que significava aquela palavra, mas desejou ser. O pão não há de faltar nessa casa, por Deus, e a mulher dormiu.

Não tinha telefone, combinou de voltar ao trabalho quinze dias depois. Era naquela segunda. Ficou duas horas com a filha esperando o ônibus, mais uma hora para chegar à zona sul. A patroa estava de máscara, que susto foi aquilo. Ficou receosa, mas a patroa nunca a encostou na vida, então se despreocupou. Nem um abraço, nem um aperto de mão. O patrão falava ao telefone com alguém, dizia que estavam de quarentena. Não podiam sair. Em meio ao diálogo, uma tosse seca interrompia o marido a cada instante. A palavra quarentena interrompeu a empregada, que aguardava mais instruções. O que era aquilo? O que significava? Maria Eugênia pensou e calou-se internamente, já estava acostumada ao não saber.

A patroa disse que a dispensaria, que não era seguro para ela e a menina ficarem ali. Mas antes haveria de realizar a última tarefa, no último dia de serviço. Desfazer as malas e lavar todas as roupas. Pagaria o dobro para isso, oitenta reais. Que deixasse a casa mais em ordem possível para o isolamento.

E Maria Eugênia fez: limpou, lavou, cozinhou. Nunca havia se cansado tanto na vida. No final do dia, sentou-se como uma desconjuntada no chão da cozinha. Ia embora, mas antes foi receber o salário. A patroa disse que só tinha uma nota de cem e uma de cinquenta e outra de vinte, o resto era euro. Perguntou se Maria Eugênia tinha troco, não tendo, recebeu setenta pelo serviço.

Antes de partir, Ângelo pediu um abraço à menina que, acanhada, não queria ir. A patroa arrancou a criança da saia da mãe e pegou-a no colo.

– Deixa de ser boba, você não vai ver o titio por um bom tempo. – Falava com raiva da menina.

E a menina na sua mudez mais profunda olhou por detrás dos ombros da patroa e clamava socorro à mãe. Esta sentiu o amargo mais profundo em sua boca, sentiu ânsia. Mas nada pôde fazer.

Ângelo a abraçou e dizia como ela era uma mulherzinha já esperta com pouca idade. Que era encantado com sua educação, sempre calada.

Repetia:

– Mulher tem que ser assim
– Mulher tem que ser assim
– Mulher tem que ser assim

A menina acabara de completar 5 anos.

Maria Eugênia pegou a filha, que abraçava a mãe em um gesto de agradecimento. Foram embora de mãos dadas. Nunca mais pisaria ali, prometeu em aliança com a filha.

Saiu, sem saber o que fazer e comer no dia seguinte. A menina quase muda, olhava para a mãe entendendo tudo. Chegaram em casa às dez da noite, comeram uma sopa rala e foram dormir, dividiam o mesmo colchão e a mesma angústia.

No outro dia, com muita dificuldade, leu o panfleto deixado pela assistente social. Descobriu que naquela tarde de terça distribuiriam cestas básicas para a comunidade. Uma cesta por adulto. Diziam para evitar levar crianças e pessoas com mais de 60 anos. O marido deu as caras naquela manhã, não aparecia há 4 dias.

– Se a gente não chegar logo, vai acabar tudo e aí eu quero ver como que a gente vai comer. – Esbravejou a mãe preocupada, só tinha meia latinha de arroz, e mais nada.
– Vai deixar a criança com quem, mulher? Ninguém fica com a menina, sabem que é a sua filha e você a levava para o trabalho. Não falei que lugar de mulher é dentro de casa? Agora você se vira aí. – O pai gritou enquanto a filha chorava e chorava na saia da mãe.
– Já que você trabalha e gosta de se gabar por isso, trate de buscar essa cesta básica, já que é tão mulher, coloca o pão na mesa, então. – Saiu o homem batendo a porta do barraco destravando a trinca: um elástico velho.
Não adiantava falar sobre o tal isolamento social, ficar em casa é uma coisa, ficar no barraco é outra história: banheiro sem porta, sem janela, o sol entrava pelas frestas de madeira, a chuva também. O cheiro de madeira podre, o chão de piso grosso e o cheiro de merda que vinha do esgoto aberto. Esse é o isolamento social.

O marido foi para o bar, bebeu e bebeu e bebeu como se não houvesse ontem. Subiu para o buteco da torneira de cima, não trabalhava desde que, bêbado, dormiu atrás de um fusca azul que deu ré em cima da sua perna. Ninguém sabe. Ninguém viu. Ficou manco, era conhecido ali como o ruim das pernas, mas bom de braço, pois surrava a mulher toda vez que ela se negava a dar o dinheiro da bebida. Surrava e surrava e surrava até os gritos dela ultrapassarem os madeirites do barraco e ecoarem morro acima. Ninguém sabe. Ninguém vê.

Então Maria Eugênia foi, sozinha, mais do que sempre, com a menina na sua saia. Sentiu um ódio tão grande do marido, que nunca ajudou em nada. Só pensava que era para ser duas cestas, era mais comida, mas ele se negou a ir, foi beber com o dinheiro dela. Uma raiva tão grande que sentiu o corpo queimar todo, era o próprio inferno, o inferno é a gente mesmo. Desceu e nunca tinha visto tanto favelado e favelizado junto, uma montoeira de gente, um empurra-empurra, uma confusão. De longe não se sabia onde começava o braço de um e terminava a perna do outro. Gente gritando que estava com fome, crianças chorando, mulheres e quase nenhum homem por ali.

Maria Eugênia se perguntava há quanto tempo aquilo se passava. Não sabia se era dez, quinze ou talvez vinte dias. Há quanto tempo aquele povo não comia? Queria ir embora, mas de vazio já bastava o estômago e as prateleiras. Se descessem depois, podiam não encontrar mais cestas. Pegou a menina no colo e enfrentou a multidão.

Voltou para casa, exausta. A cabeça fritava pensando no racionamento da comida, para quanto tempo aquela cesta daria? Há de prover: a mulher pensava. Ele tem que prover. Pegou o fubá, mexeu o angu. Pegou o feijão e cozinhou com bastante água. E só, aquele era o almoço do dia. Colocou a comida para a menina no pratinho de lata. Maria Eugênia não tinha sossego, pois agora que não trabalhava, todas as refeições seriam em casa. Já pensava no que comer na janta. Outra preocupação.

O marido chegou em casa e exalava álcool, pedia mais dinheiro, queria beber mais, era um viciado. Maria Eugênia se negava.

Não tenho. Não tem. Não vai ter.

E aquilo bastou. O marido manco surrou a mulher o resto da tarde. Cada vez que ele pedia e ela negava, desfalecia um golpe. Usava a própria bengala e surrava a mulher cada vez com mais força. Se gritava, surrava mais. Se não gritava, surrava até gritar. Maria Eugênia só queria o emprego de volta. Seria assim todos os dias? Não sabia. A criança olhava tudo, ia fugir para onde? A casa tinha dois cômodos só: sala-quarto-cozinha e banheiro. Não existia porta, era uma cortina. O homem não sabia onde a mulher guardava dinheiro, mas a filha, sim. A mãe desacordada e a surra continuava.

– Me dá dinheiro, sua vagabunda! Não quer trabalhar, então cadê o dinheiro?

A filha foi até uma latinha na cozinha sem que o pai pudesse ver e pegou vinte dos 70 recebidos no último serviço. E deu, em silêncio, sempre. O homem foi embora, foi beber mais. Ele ia voltar? Não sabiam.

A mulher desacordada no chão, a filha sentou na sua saia e esperou, esperou e esperou. Pensou que pudesse estar morta. Acordou só no outro dia, desfigurada, se olhou em meio espelho quebrado, se viu com dois dentes a menos. Enxergando de um olho só e sem forças nem para chorar. Tratou de tomar um banho e esperar os ferimentos se curarem sozinho. Mais uma preocupação.

Assim decorreram os dias da semana, o olho esquerdo desinchava-se e, aos poucos, a visão voltava. A vizinhança que ouviu os gritos visitava todos os dias Maria e perguntava se precisava de alguma coisa. Um levou fubá, outra meia dúzia de ovos e o outro até um pouco de carne. As faveladas se solidarizam e fazem o papel do Estado. A polícia não sobe ali. Os homens unem-se com eles, os poucos que existiam. As mulheres são elas por elas. Um dia Maria Eugênia, outro Neuzinha, noutro Conceição. Toda vez que ouviam-se gritos rezavam pedindo proteção. O máximo que podiam fazer, além de visitas na ausência do homem. Os gritos aumentaram durante o isolamento social, cada dia uma mulher para visitar e cuidar. Que sofrimento e angústia era aquele período. Não bastava a fome.

Passou cinco dias e o marido não voltou mais. Rezou para Deus para que tivesse morrido e caído em qualquer vala. No morro, ninguém o viu mais, nem no bar. Havia sumido depois de beber muito naquele dia. Maria só pensava: fusca maldito, devia ter passado para matar.

As rezas no terreiro continuavam, já que oração era o remédio do favelado para tudo. Sem fé não podiam viver. É melhor acreditar que Deus quer assim do que o homem fez assim. Naquele dia, o babalorixá chamou Maria, disse que tinha um recado. A mulher sucumbiu, tomou um banho de folhas e foi conversar com o mestre, que lhe adiantara tudo.

Na festa do terreiro, na certa hora, o Erê subiu e quem desceu foi seu Sultão da Mata que chamou e disse:

– Pegue a menina, vá pra casa, prepare o coração e seja forte. Vá!

Naquela noite, sentiu um aperto no peito, sentiu o coração murchar, tal como uma rosa. Sentada na cama, apertava o peito, junto à guia que avó lhe dera. Não sabia o que era. Levantou, bebeu água e olhou para a menina, que dormia encolhida, tal como um feto, em posição originária de proteção, recolhendo de si. A menina tossia, tossia, uma tosse seca sem fim.

Igual a do patrão, a mãe pensou.

E viu, sentiu, presa ao vira-mundo-moderno: a terra girar diante de seus pés.