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Wagnão

Arthur Arantes Souza

Quando a câmera está rodando ele se torna a própria definição de concentração. Sua visão para planejar e analisar uma cena não se compara com a de ninguém em um raio de poucos metros. Seu nome é Wagner, e ele é diretor de filmes pornôs.

Sempre foi fascinado com um princípio da pornografia: em qualquer situação, por mais corriqueira ou incômoda que seja, alguém acabaria transando. No auge do seu onanismo adolescente, uma figura se firmou em sua mente: a do trabalhador braçal nos filmes de sexo explícito.

O limpador de piscina, o entregador de pizza, o encanador, o pintor, o eletricista. A pornografia roteirizada é a utopia do trabalhador braçal, pensava Wagner. Não importa o quão penoso fosse seu trabalho, não importa o quão mal pago, ele sempre era recompensado de maneira não convencional ao fim do expediente (ou não, pois em alguns casos não chegava nem a prestar o serviço pelo qual tinha sido contratado).

A madame que requisita o trabalho é sempre alguém de uma posição social mais alta – por isso, madame. O marido, um empresário que não a sacia sexualmente, pode ou não participar da transação (a depender da imaginação do diretor). O homem, empreendedor e de posses, é mostrado como frio, que só pensa no trabalho. Ele não tem tempo para sua jovem esposa que precisa satisfazer suas necessidades não materiais de outra maneira.

O cuidador da piscina, enquanto retira a sujeira da água com uma rede, está ali sob o olhar lascivo da consorte insatisfeita. Ela o chama. O nome é sempre comum, de trabalhador, José, Sebastião. Não existe limpador de piscina que se chama Pedro Pompéia no imaginário pornô. É José da Silva, o brasileiro genérico.

A patroa pede para que ele passe o protetor solar nas suas costas porque ela não consegue fazê-lo sozinha. José, se estivesse em uma situação da vida real, se faria de desentendido. O senhor Pedro Pompéia não consideraria adequado que o rapaz que limpa a piscina colocasse as mãos sobre o corpo seminu de sua esposa. Nesse caso, no entanto, o Sr. Pompéia já tinha chegado em casa e observava tudo da janela do segundo andar. Ele e a madame já tinham combinado de antemão: ela seduziria José, e o marido assistiria a tudo de longe.

Como a pornografia abre pouco espaço para dilemas morais, depois de uma hesitação inicial, da Silva passa a mão besuntada de creme por todo o corpo de sua patroa. O resto é, como imaginam, a sucessão normal de eventos nesse tipo de filme: chupa, chupa, soca, soca e fim.

Wagner, contudo, via essa utopia como um desserviço à classe trabalhadora. Sob a promessa vaga de gratificação sexual, escondia-se a assimetria de poder. José era apenas um peão nos jogos de sedução entre um marido e uma esposa rica. Era manejado contra a própria vontade, o que é explicitado pela sua hesitação, ainda que breve, no começo do filme. É uma pequena evidência de que algo está errado e José sabe.

É o velho problema da leniência causada por algo que dissimula a verdade das relações. “A religião é o ópio do povo”. Para aqueles em que as chorumelas das igrejas fazem pouco sentido, o sexo é o ópio.

Era como Wagner interpretava o espetáculo pornô. Quando decidiu que queria fazer filmes, foi por esse caminho, que considerava vil para a sociedade, que enveredou. Queria transformar a pornografia por dentro.

Filmou sua cota de chupa, chupa, soca, soca. Já com algum renome, o agora Wagnão (tinha que ter um apelido de respeito) começou a escrever os próprios roteiros. Nos primeiros, evitava o trabalhador como um todo. Seu tema favorito eram festas universitárias. Considerava enfadonhos os personagens sem complexidade e resolveu que precisava de conflito.

Criou a figura do Rogerão Madeirudo. Era uma mistura de pornô e terror, uma homenagem aos grandes mestres dos dois gêneros. Madeirudo era uma alma que precisava de fluidos sexuais para manter-se no plano material. Ele assombrava festas de swing e surubas.

Quando se cansou de sua criação, resolveu que era hora de atacar o problema que tinha motivado sua entrada na indústria: o trabalhador.

Seus primeiros filmes tentaram deslocar os personagens das situações clichês. Ao invés de ser seduzido por uma esposa entediada, o entregador de pizza se tornou um verdadeiro objeto de afeto e amor romântico. No fim, a dona de casa abandonava seu marido entediante pelo seu amado em uma garupa de moto.

Sentia, apesar disso, que não estava indo longe o bastante. Nos filmes seguintes, o trabalhador passou a ser um voyeur. Maridos, esposas, amigos e universitários transavam enquanto o proletário era apenas um espectador. Em algumas obras, tratadas pela crítica especializada como o “despertar de Wagnão”, o trabalhador cumpria sua tarefa sem se abater pelo festival dionisíaco que se desenrolava à sua frente.

Um crítico escreveu certa vez que “Wagnão levou ao pornô uma nova dimensão do realismo. Abandonou o clichê dos encanadores hipersexualizados e refletiu sobre a condição de invisibilidade da classe trabalhadora: jovens transam na frente de seus empregados como se ali ninguém estivesse. De fato, para as classes dominantes, quem está na base da pirâmide não é um sujeito. Há um não-sujeito tratado com desprezo, a quem não se estende um convite, não se dá a cortesia do prazer. Nota dez para as cenas de anal”.

Esse foi o pulo do gato para o diretor. Chamavam-no de mestre do pornô social, o criador do pós-pornô. Após gozar do novo respeito adquirido, Wagnão refletiu que fizera pouco. A promessa de sexo para o trabalhador ainda estava lá, mesmo como um observador passivo.

Foi aí que teve sua ideia que mudou o patamar do entretenimento adulto. Ele soube que precisaria tirar algo dessa equação para realmente transformar o gênero e causar o impacto que desejava. O mundo do pornô nunca mais seria o mesmo após sua intervenção.

Contratou dois atores e duas atrizes, colaboradores de longa data. Explicou para eles os personagens: um marido que não prestava atenção na esposa, a mulher frustrada e insatisfeita, uma diarista e, por último, o jardineiro. Sem dizer nada para eles sobre suas intenções, viagras foram tomados, enemas foram feitos.

Seguiu-se a arte do improviso: Wagnão apenas revelou o enredo no momento da filmagem de cada tomada.

Na cena, o marido chega em casa com um semblante abatido. A esposa pergunta como foi o trabalho, acariciando-o. Ele reclama do chefe, da empresa e das dificuldades. Ela intensifica as carícias, mas o homem a rejeita dizendo que está cansado.

Ela sobe as escadas chateada e se fecha no quarto aos prantos sem perceber que a diarista está limpando a suíte. A jovem se revela e pergunta por que a patroa está tão mal. Elas conversam sobre as dificuldades de ser mulher, sobre como é difícil manter um casamento. A empregada diz que vai ficar tudo bem, que sempre há fases como essas.

O jardineiro segue tratando o jardim e repara brevemente que o patrão e a patroa tiveram algum tipo de briga. Ele ignora e continua a regar as plantas e a podar os arbustos.

A empregada se despede da patroa, desce as escadas, e o patrão paga o dia de trabalho. No caminho, encontra-se com o jardineiro que pergunta o porquê da comoção. Ela responde que não é problema dela e que não quer se meter. Problemas de ricos.

O rapaz concorda e reflete que seu casamento também não anda bem. Diferentemente dos patrões, precisa lidar com isso em um pequeno barraco com um salário de miséria que mal dá para comer, pagar as contas e tomar um pouco de cerveja no final de semana. Ele pensa em como o mundo é injusto e no que poderia ser feito para isso mudar.

O filme corta para ele recolhendo suas ferramentas e descendo a rua em direção ao ponto de ônibus.