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Entrevista Carol Rodrigues

Primeiros Passos

Todo grande escritor tem seu caminho
próprio, mas poucos chegam ao topo da profissão
tão rapidamente quanto Carol Rodrigues. A carioca
radicada em São Paulo teve sua estreia na literatura,
“Sem Vista para o Mar”, reconhecida como o
melhor livro de contos de 2015 pelo Prêmio Jabuti
e pelo Prêmio Biblioteca Nacional. Mas se engana
quem pensa (talvez baseado em sua idade e falta
de experiência no mercado editorial) que a prosa
da autora foi desenvolvida da noite para o dia. Em
entrevista para a Chama, Carol fala um pouco de seu
processo de maturação literária (“Acho que uma hora
devemos confiar na nossa voz e no nosso processo
e parar de depender de incentivos externos”), da
dificuldade em se concentrar (“Geralmente tento
cumprir três sessões de escrita por semana”) e diz que
o processo de escrita atual não precisa passar pelo
isolamento (“A ideia do artista na torre de marfim
com todo o tempo e estrutura para criar é muito
ultrapassada”).

Como começou sua trajetória na
escrita?
Quando eu era muito
pequena dizia que queria ser poeta
e, obviamente, sofria algum
bullying carinhoso na escola por
isso. Aos 13 ganhei um concurso
de poesia nessa mesma escola, e
acho que foi a primeira exposição
de algo escrito, comentado, e,
principalmente, lido por várias
pessoas. Enfim, foi um primeiro
bloquinho na construção dessa
identidade. O poema era chamado
“Animal de Paletó” e era muito
engraçado, sobre a corrupção no
Planalto Central e tal.
E aí existe o capitalismo,
que faz a gente errar muito até
acertar. Se por acaso um dia acertar,
por isso nunca pensei em estudar
letras ou buscar a escrita como
profissão. Afinal, as contas. Muitas
curvas aconteceram até eu assumir
mais profundamente essa persona,
fiz faculdade de cinema, mestrado
em performance, muitos trabalhos
com educação e produção nessas
áreas, e enfim a escrita permaneceu
como a coisa mais importante
de todas, porque é, para mim, onde
consigo colocar mais verdade.
Suas primeiras histórias têm alguma
relação com o trabalho
que você faz hoje?
Pensando nos escritos
mais antigos, não, nenhuma. Ainda
bem, eram muito ruins.
Os contos de “Sem Vista para o
Mar” foram feitos durante um
curso de escrita com Marcelino
Freire. Você já tinha feito algum
curso de escrita antes?
Fiz vários, foi fazendo oficinas
e expondo o texto a outras
pessoas que eu comecei a entender
que existia uma voz ali e que deveria
seguir por ela. A primeira oficina,
em 2009, foi com a Márcia
Denser, que me passou o entusiasmo
pelo formato conto, depois foi
o Marcelino Freire que chamou a
atenção para a sonoridade e o ritmo
e me provocou a seguir por aí.
Fiz também o Clipe na Casa das
Rosas, que me ajudou bastante.
Há dois anos participo de um grupo
de escrita em que toda semana
apresentamos textos para a sabatina
geral, o que nos traz disciplina
e cumplicidade. Acho que esses
são pontos bem importantes no
caminho todo: obsessão e compartilhamento.
O processo do curso, especificamente,
ajudou?
Ajudou demais, o compartilhamento
é algo muito essencial
pra confiar na própria voz. Acho
que é oferecendo ela pro outro que
você toma ela pra você.
Alguns jornais falam que os 21
contos foram escritos ao longo
de 13 dias de aula. É isso mesmo?
A falta de um incentivo externo
pode atrapalhar?
Não! Demorei uns sete,
oito meses para fazer, alguns como
exercício da oficina, e grande parte
já depois de a oficina ter terminado.
Acho que uma hora devemos
confiar na nossa voz e no nosso
processo e parar de depender de
incentivos externos. Espero que
eu consiga essa maturidade daqui
pra frente.
Você ganhou dois grandes prêmios
nacionais (o Bibliteca Nacional
e o Jabuti) com seu livro
de estreia. Como foi sua reação?
Como isso te influenciou?
Surpresa, medo, receio,
manecer pelo menos duas horas
no processo, porque antes disso
raramente vem coisa boa. Tenho
achado que a coisa toda se trata
mais de insistência do que de
inspiração ou algo assim.
A minha percepção é que
muitos brasileiros têm vontade de
escrever e publicar suas histórias,
mas poucos conseguem quebrar a
barreira que é sentar e, finalmente,
colocar no papel suas ideias.
O que você diria para quem pensa
em começar, mas, por quaisquer
motivos, hesita?
Acho que a primeira prova
de um escritor é exatamente essa:
alegria, confusão. Influencia como
incentivo e principalmente como
escuta. É muito bom escutar a
opinião de mais leitores, diferentes
e distantes de mim, que muito
carinhosamente me escrevem pra
contar suas impressões. E tudo
isso com certeza vai
para as próximas
produções.
Com o que você
trabalha hoje?
Tr a b a l h o
no Itaú Cultural,
com produção de
cinema e literatura.
Desde que ganhei
os prêmios não escrevi
uma linha
de ficção, apenas
linhas de entrevistas. Sinto muita
falta, bate uma crise, mas está
tudo bem, em breve eu volto ao
ritmo.
Quanto tempo você dedica por
dia para a escrita?
Eu geralmente tento cumprir
três sessões de escrita por
semana, à noite e aos finais de semana.
E para mim é essencial pervocê
consegue permanecer sentado
durante algumas horas olhando
para uma superfície em branco,
completando ela com palavras e,
depois, brigando com essas palavras?
A segunda prova é: você sente
algum prazer em passar essas horas
assim? Porque se
isso for visto como
algum tipo de perda
de tempo, aí realmente
acho que é
melhor não perder
tempo. Porque para
mim, pelo menos,
escrever é bem isso,
acho que não posso
criar expectativas
para além dessas
horas que passo
brigando com as
palavras. Claro que se colocamos o
coração inteiro na coisa, a vida de
algum jeito dá os seus retornos.
Acho também que a ideia
do artista na torre de marfim com
todo o tempo e estrutura para criar
é muito ultrapassada. A gente tem
que se juntar com quem quer fazer
também, estamos todos no perrengue,
na luta, é isso aí, tem que dar
uma raça mesmo, sem medo!

 

Onde
acaba
o mapa
Trecho do livro
“Sem Vista para o Mar:
Contos de Fuga”

Ele não existe e de repente ele
existe.
Faz cinco dias foi jurado.
Manhã ainda escura, boné short
adidas, duas listras, a gola do uniforme
pingada da marmita, carne de panela,
foi na boleia de Tupi Paulista a São João
do Pau D’Alho. E de barco até Pauliceia.
E mais boleia até Olaria.
Desceu o rio que parece mar,
porto a porto o rio Paraná Porto X
Guana Itaporã. Afunilou em Rosana e
se apertou até Porto Rico que é onde
acaba o Mapa Rodoviário do Estado de
São Paulo. Era o que tinha esse menino
novo de buço liso quando saiu do
portão da escola, direto pra estrada, na
manhã, aquela, foi jurado, cinco dias.
Em Porto Rico marejava
enjoado tanta hora, o corpo, gravitando
no colo da água. Mas era bonito as
ilhazinhas a praia de areia clara os
casarões à beira-mar, como falava
quem estava ali, recebendo, apontando,
Onde
acaba
o mapa
Trecho do livro
“Sem Vista para o Mar:
Contos de Fuga”
ele ouviu, que o rio era água demais
era mesmo quase o mar.
Saiu do barco são cem pratas
tudo isso. A nota pinçada triste o
bolso largo das listras. Olhou pro céu
outro dia.
Na padaria mais de esquina
mais franzina pediu pingado um pão
na chapa só tem pão de leite pode ser.
Veja dois veja três tenho fome tem
queijo tem presunto? Coloca tudo
na chapa pode ser. O chapeiro chapa
tudo olha de cima do avental tá aqui
por quê tem aula não, tá de uniforme
de onde é?
Vim de cima do rio vim do
porto de Olaria. Vim pra ver gringo
ver turista onde é que tem? Tem
mais tarde, na praia, o mais turista
que tu vai ver é de São Paulo, Porto
Alegre, Curitiba, carioca não tem, do
nordeste ninguém. E gringo mesmo
só gringo perdido achando que tá
perto da Argentina. Quando eu digo
que tem todo um estado gordo um
Mato Grosso do Sul pra chegar num
Paraguai e só depois a Argentina eles
perguntam onde é o aeroporto mais
perto eu digo aqui? Tem não. Tem
rodoviária que em dois dias deixa lá.
Acho triste acabar com romance de
cabeça de turista mas é tanto bicho
grilo que aparece aqui assim, tu nem
sabe, tu nem viu. E onde faz festa
quem vem de fora? Tu quer festa de
rico ou de pobre?