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Hilda

Flávia Batista

Se o empoderamente feminino tivesse uma personificação, seria Hilda. Não só pelo seu nome,
que é adequadamente forte para a personagem, mas por sua habilidade de, já na primeira linha,
decidir largar o indigesto mundo de concreto e partir. A partir dali, o conto de Flávia Batista
narra a catarse de uma mulher que já não aguenta mais a pressão, que não ganha explicação,
mas será facilmente compreendida pelas leitoras. E ainda há a cereja do bolo: determinada a
cumprir a inescapável expectativa do leitor, a autora não deixa de foras as deliciosas referências
ao “furacão”.

Ela se foi . Largou tudo , todo o mundo de
concreto, seu mundo indigesto, e simplesmente se foi.
Foi pra chuva. Se despiu. Pegou um ônibus, o primeiro
que passou, nem reparou o número. Afoita, molhada,
angustiada, se sufocou. Aquele espaço retangular cúbico
também era apertado demais para a liberdade que ela
trazia no peito. Havia ainda aquele sentimento sem nome
que latejava em tudo o que ela era. Inominável, sim, porque
tinha um nome bonito demais para ser pronunciado em
voz alta. Era quase um sussurro.
Deu sinal, desceu no meio do caminho (agora ela
era um furacão no meio do caminho). A chuva cobria o
rosto, disfarçava as lágrimas, se misturava à dor, ao amor e
ao self. Não sabia o que era o quê. Apenas sabia o que se era.
A chuva engrossou. Ela tinha uma pressa desvairada.
Uma pressa sincera, bonita, honesta. Aquela pressa que
a gente tem quando se quer ser feliz a todo custo. Aquela
ansiedade toda.
Ansiosa. Apressou os passos contra a chuva que caía.
Já podia avistar a praça do ponto em que estava. Começou a
correr, mas viu à esquerda, numa casa que parecia inabitada,
a imagem imponente de Buda.
“É sinal de sorte”, logo pensou. Buda, gauchismo,
chuva e ânsia. Só podia mesmo ser sinal de sorte.
Parou. Olhou bem firme pra Buda. Olhos de Buda
em olhos de jabuticabas marejados de lágrima-poente.
Olhou fundo, respirou profundo. Com as mãos em prece,
repetiu seis vezes seu mantra favorito. Não tinha religião,
não tinha nada. Mas naquele momento era o último vestígio
de fé que buscava resgatar de seus porões.
Ao recitar pela última vez esboçou um grito: gritou
o mais alto que pôde. Escancarou as entranhas e vomitou
um pedaço da dor. Pediu pra Buda um milagre. Pediu pro
seu deus um milagre, um milagrinho só que fosse. Ela não
sabia ainda que era deus.
Fechou os olhos. Como num
sonho, o vento soprou alimentando
a chuva, fortalecendo a sua bolha
imaginária. Prosseguiu. Firme, corajosa.
Quando, enfim, chegou ao topo.
Num silêncio de morte (que
clamava pra ser vivo), olhou com seriedade
para a cidade. Não havia vergonha,
não havia barreiras: ela estava
nua. Ela era na chuva a nudez mais
bonita que a praça já vira.
Sentou-se. Bem na quina,
bem na ponta. Como se pudesse
zarpar voo a qualquer momento.
Olhou pro lado e se lembrou de um
sonho distante, alheio a tudo aquilo
que ela vivia agora.
“Se não tivesse ninguém
olhando, tenho certeza de que você
deixaria o corpo aqui na grama”.
E deixou. Mas não se lembrava
exatamente de como havia libertado
as coisas. Dado ao corpo mais
uma chance de retornar à sua origem
orgânica. Terra, grama, verme e átomo.
Deu ao corpo e a si mesma uma
chance orgânica de serem unos. Inteiros,
completos, totais.
Olhou pra frente. Afinal, não
havia mais motivo para olhar pra
trás. Agora só restavam o caminho e
os passos marcados no chão. Agora
ela só se preocuparia com as pegadas
ainda não feitas. O rumo a traçar. A
vida inteira a percorrer.
Piscou profundo, mas pareceu
rápido demais. Tão rápido que
não conseguia entender o que aquele
homem fazia ali sentado ao lado dela,
observando-a com o mar nos olhos:
ávidos e úmidos, reflexos da chuva.
– O que você faz aqui?
Ela se espantou. Seu mundo
inteiro se espantou. Ela era um tufão
espantado de amor.
Retribuiu o olhar da forma
mais honesta que sabia retribuir
olhares: desta vez o medo não existia
mais, não se firmava, não tinha força.
Desta vez ela engoliu o medo antes que
ele pudesse engoli-la. E, quando deu
por si, estava submersa e segura num
oceano inteiro.
Então, no meio da chuva, ela
reencontrou sua voz. Perdeu o susto
e se encheu de loucura. Seus olhos de
jabuticabas estavam plenos e calmos.
Deixou o peito falar usando a voz que
sabia:
– Estava te esperando.
Fechou os olhos. Como
num sonho, havia vento. Sentiu o
beijo do vento como quem sente o
renascimento da esperança. Deu a
mão ao amor. Ao vento, à chuva, ao
mar. Deu a mão à parte mais bonita
de si.
Buda ouviu o grito do furacão:
e assim Hilda nasceu.