O Namorado
Fábio Corrêa
Viver um romance é aceitar a perda do controle. Na medida em que os corações se fundem
e os sentimentos se exacerbam, o casal entra num estado de graça que parece ser eterno.
A narrativa de Fábio Corrêa usa esse sentimento para escancarar as complicações de um
namoro em que o casal é composto de pessoas tão diferentes quanto o dia e a noite. Fazendo
jus ao gênero conto, “O Namorado” é uma narrativa delicadamente construída para enganar
e seduzir. Romântica do início ao fim, ela guarda reviravoltas surpreendentes e revela ao
leitor seus próprios preconceitos.
Conheceu -o no ônibus , numa tarde chuvosa .
Os dois, em pé, ela tentando se segurar enquanto, a
cada curva fechada, caía pelas tabelas. Ele, mantendo-se
elegantemente no mesmo lugar, apesar do brio automobilístico
do motorista.
Impressionou-se antes de tudo pela sua classe
e elegância. Modos de gentleman que faziam-na suspirar,
lembrando o grande Allan Roquefort nas telas preto-
e-brancas, cujo agir encobria o romantismo por trás
de uma educação sedutora.
Como acontece com qualquer princípio de paixão,
engataram uma desavisada conversa sobre tópicos cotidianos.
As chuvas, as árvores na chuva e os piolhos que apareciam
em tempos úmidos. Acrobacias e Darwin. Disfarçando
um cristianismo latente, ela conseguira – para a
própria surpresa – argumentar racionalmente a favor do
Evolucionismo. Recordava do tio Irênio tomando banho
de piscina, a infinidade de cabelos molhados nas costas que
contrastava com a calvície gritante.
Trocaram telefones e se despediram. Ela virou-se
ao descer do ônibus, deixando escapar um sorriso.
“Prazer, Simão”, ele havia dito, rindo com apenas um dos
lados da boca, ampla, com dentes grandes e brilhantes.
Cego, como todo o amor, estava o julgamento dela. Pelo
menos seria isso o que afirmariam seus pais depois de o
conhecerem num almoço de domingo.
“Mas ele nem tocou na lasanha, só ficou comendo
banana e se coçando”, lamentava a mãe, inconsolável,
sem saber que a coceira não era de longe um hábito, mas
sim causada por uma micose contraída na piscina do
Clube dos Oficiais.
Talvez fosse verdade, ela pensava. “E daí?”, não
havia nada de errado. Talvez um rosto demasiadamente
peludo, orelhas um pouco grandes, uma risada aguda e
pausada que mais parecia um assobio. Mas não lhe importava.
Afinal de contas, todos tinham defeitos, inclusive
ela mesma.
“E vocês também nunca perceberam que eu
tenho uma teta maior que a outra”, responderia aos pais,
deixando claro que também lhes acometia a costumaz
cegueira do amor.
Não se abalou. Com unhas e dentes, se agarrou
ao namoro e à certeza de que queria estar sempre ao lado
de Simão. Não se preocupava se lhe apreciava o pular pelos
galhos das árvores enquanto caminhavam aos sábados
nem que às vezes preferisse andar com as mãos ao
chão. “Flexibilidade”, ele explicava.
Mas ela perdia a compostura quando lhe diziam,
à porta de um restaurante ou de uma agência bancária,
que o amado teria que esperar do lado de fora.
“Já estou acostumado”, afirmava Simão. “Esta é
uma sociedade arbitrária e excludente, feita por humanos
e destruída por eles”.
Durante a semana, ele trabalhava como contínuo
administrativo no Zoológico Municipal. Apesar
da concorrência e do preconceito velado no processo
de seleção, havia sido contratado por ser um exímio
conhecedor do assunto.
Um dia, foram ao circo. Ao entrar Simão mostrou
a carteira de identidade e pagou meia-entrada.
Surpresa, ela pediu para ver o documento. Ele, relutante,
desconversou. Porém, naquela noite, enquanto
Simão dormia profundamente após uma sessão de
paixão animal, ela encontrou a identidade no bolso do
casaco de couro. Acordou-o, desolada e aos prantos:
“Quatro anos? Você tem quatro anos? E eu
aqui, fodendo uma criança!”
Mas a crise passou. Ela voltou a relevar as leis
naturais e o senso comum, acreditando que a realidade
pertence ao sujeito e a ninguém mais. Assim, via
Simão como um adulto completo, sentindo por ele
um amor legítimo, quase irrepreensível.
Porém, o tempo foi passando, e Simão haveria
de mudar. Primeiro, criara músculos em todo corpo,
o que era bom. “É bom, músculos”, ela pensava.
E ela não se importava que as noites de amor
tórridas terminassem com hematomas nos braços e
nas pernas. “É amor”, matutava.
Num sábado, Simão segurou a mão dela e
quebrou-lhe o mindinho. Assustado, ele balançava a
cabeça, enquanto assistia lamentoso a enfermeira colocando
a atadura.
“Não tem problema, Simãozinho, isso é amor
demais da conta”, ela consolava.
Algum tempo depois, trincou-lhe uma costela
num abraço.
“Tudo bem, Simãozinho, é que você tem
carinho demais para dar”.
Mas Simão sabia que a coisa não seria assim
para sempre. Sentia os hormônios tomando conta de
seu corpo e o instinto que começava a tomar o seu
espírito e a descontrolar seus atos. Era tanta força que
pensou em aproveitá-la para o bem. Inscreveu-se no
jiu-jitsu, mas foi expulso após fraturar a clavícula de
um colega logo na primeira aula.
“Saia daqui e não volte nunca mais, seu animal”,
gritava o mestre, chorando enquanto abraçava o
traumatizado pupilo.
Aos poucos, começaram a encontrar-se com
menos frequência. Apenas duas vezes por semana,
uma vez por semana, uma a cada quinze dias, uma vez
por mês. A cada encontro, um membro era quebrado,
um dente era perdido ou hematomas cultivados. Mas
isso não era problema para ela.
“Me arrebenta de prazer!”, urrava.
Simão sabia que não havia muito mais o que
fazer. “Que mulher sem noção”, pensava, melancólico
por sentir que o rompimento seria, em breve, uma
medida necessária para a sobrevivência dela.
Numa noite, ao olhá-la desmaiada, com o corpo
nu brilhando à luz da lua, Simão percebeu que a hora
havia chegado. Escreveu uma carta em apenas algumas
linhas, colocou ao lado do travesseiro e partiu.
“A natureza é cruel. A humanidade é nefasta. É o
fim. Ou o começo. Estou indo para onde me chamam.”
Ao acordar e encontrar o bilhete, ela choraria
rios de lágrimas salgadas. Soluços urrantes, socos na
parede. Para ela, nada era um obstáculo. Nem mesmo
os nocautes, os traumatismos e as hemorragias.
“Seu filho de uma puta ingrato!”, gritava pelas
janelas, tão alto que Simão, entre uma mangueira
e outra, deixava escorrer uma lágrima cada vez que a
escutava.
Mas, como é regra, o tempo curou as marcas
deixadas pelo rompimento. O que se passou até o reencontro
não se sabe ao certo. A única certeza é que
Simão, pouco afeito à vida social na natureza, havia
voltado à cidade.
Num domingo, algumas décadas depois, ela e
o marido Castor passeavam pelo Zoológico Municipal
quando os olhares se cruzaram novamente. Petrificada,
ela caminhou lentamente em direção à jaula.
“Simão”, ela disse.
“Gata, que saudades”.
Castor olhava abobalhado, sem entender.
Cuidadosa o bastante para não dar chances a uma
possível inquisição do marido, virou as costas e se
retirou, sem ao menos perceber que Simão se tocava
com luxúria, inebriado pelos odores de sensações
passadas, o que divertia um grupo de adolescentes
no qual uma garota, recém-saída da inocência pueril,
o observava em meio a gargalhadas inconsequentes
dos amigos, deixando-se levar pela silenciosa
e libertária cobiça reservada apenas àqueles
humanos cujas breves existências ainda não tiveram
o instinto da curiosidade ceifado pelas cruéis garras
da experiência.