Ir para conteúdo principal

Casa de bonecas

Flávia Denise de Magalhães

Ter ousadia para encarar os obstáculos que impedem de vivenciar, ou pelo menos vislumbrar, possibilidades
infinitas. A narrativa de Flávia Denise usa elementos do realismo fantástico para construir
uma metáfora que remete a todos os momentos em que a contestação se torna uma definição da vida,
principalmente quando autoridades que são instituídas por nós mesmos tentam nos manter dentro
do status quo. Como essas oportunidades no tempo costumam surgir durante os anos de formação da
pessoa, nada mais natural que a protagonista seja uma criança, decidida, destemida e inconsequente –
como é típico da juventude. Mas além dessas características, Flávia mostra que, para se dar um passo
rumo ao incerto, é preciso também ter – como já preconizava Guimarães Rosa – coragem.

Ela não tinha um metro
de altura, mas sua presença era a
de um gigante. Com os cabelos
perfeitamente enrolados, arrumados
como os de uma boneca cara,
ela conseguiu entrar na sala mais
importante da casa do pai. Quem
suspeitaria do comportamento da
menina que havia conquistado o
coração do homem mais poderoso
do mundo?
– Papai mandou eu pegar o
cachimbo dele – seus pequenos olhos
brilhantes exalavam inocência.
O segurança de terno nem
se deu o trabalho de olhar para
baixo. Suas ordens eram claras.
Ninguém, além do chefe, podia
entrar na sala que ficava ao centro
do labirinto escondido no subterrâneo
da casa de quatro andares no
bairro mais respeitável da cidade.
– Ele falou que, se você não
me deixasse entrar, era pra falar
“Doctor Pepper”.
A senha, que ela ouviu do
pai quando ele achou que a filha
já estava dormindo, funcionou. O
enorme homem de terno se mexeu,
claramente relutante.
– Onde você escutou essas
palavras?
– Meu pai me contou pra
eu pegar o cachimbo dele.
– Você está mentindo. E
não pode entrar, é muito perigoso.
– Então vai perguntar pra
ele. Mas ele vai ficar bravo.
Apesar da mentira da
menina ser óbvia, o segurança
tinha ordens claras de nunca tentar
evitar a entrada de alguém munido
da senha. Sem um rádio para tirar
a dúvida e sem querer deixar a porta,
ele não sabia o que fazer.
– Meu pai está me esperando.
Pegar o cachimbo dele vai demorar
menos de um minuto.
Contrariado, o segurança não viu opção. Se
ela entrasse e saísse bem rápido, ninguém ia precisar
de saber. Se alguém perguntasse, diria que o chefe
deixou o cachimbo cair no corredor e que ele o entregou
para ela.
– Você vai entrar, pegar o cachimbo e sair
correndo. Se alguma coisa acontecer, você corre. Não
para, não olha. Corre. Entendeu?
– Sim, senhor! – disse imitando o jeito engraçado
dos seguranças.
Por um minuto ele pareceu prestes a mudar
de ideia, mas, depois de olhar bem para os dois lados
do corredor sem encontrar nada além das passagens
sombrias, com tapetes antigos e portas de madeira
maciça, acabou concordando. “Isso não está certo.
Não é lugar para uma criança”, pensou.
– Está pronta?
– Aham.
Ele só abriu a porta o bastante para deixar a
Isadora entrar.
A pequena boneca entrou em silêncio e
reverência, com medo de o adulto desistir e puxá-la de
volta. Suas pernas curtas só eram capazes de dar passos
minúsculos, acompanhados do som ritmado de
suas sapatilhas de verniz com sola de couro tocando
no chão reluzente de madeira escura. O medo estampado
no rosto do guarda não passou despercebido, e
Isadora hesitou após os primeiros passos, deixando os
segundos suspensos entre um toque e outro do sapato
no chão, mas qualquer dúvida que passou pela sua
cabeça deve ter sido superada pela curiosidade, pois
quando retomou a caminhada estava mais decidida
do que nunca.
Da sua diminuta altura viu as costas altas de
uma poltrona. Ela deu a volta, de olho nas pregas no
couro vermelho. Era ali que seu pai se sentava, tinha
certeza. Do outro lado da poltrona, uma pequena
mesinha com o cachimbo de casco de tartaruga. Ele
tinha mesmo esquecido ele ali. Começando a se divertir
com a aventura, ela subiu na poltrona e, quando
finalmente conseguiu escalar o móvel, se sentou. Na
sua frente estava o objetivo de ser da sala.
A parede parecia não acabar, não que Isadora
estivesse procurando seu fim. Ocupando cada
centímetro, portinhas coloridas espremidas umas
contra as outras. Todas pareciam ser a e entrada da
melhor casa de bonecas do mundo. Havia portas
roxas, rosas, vermelhas, azuis, amarelas… E cada
uma delas parecia ter um estilo próprio. Enquanto
uma só poderia levar a um palácio onde morava uma
princesa, a outra era, certamente, de uma loja de carros
e ficava ao lado de uma entrada que mais parecia
uma tábua de madeira, de tão simples. Isadora não
conseguia fixar o olhar em nenhuma delas. Portinhas
esperando para serem exploradas. Isadora observou
tudo com os pequenos olhos arregalados e os lábios
formando um sorriso infantil.
– Elas são pra mim – disse para ninguém em
especial.
O medo que havia sentido quando entrou na
sala há muito havia ficado para trás. Determinada, ela
desceu da poltrona e correu até o seu novo brinquedo
preferido. Toc-toc-toc, fizeram seus sapatos no chão
de madeira. Até que…nada. Ela olhou para baixo e viu
que pisava sobre terra úmida e escura. Duas piscadas
de olho durou a observação, antes de ela alcançar as
portas. Caprichosa, Isadora escolhia cuidadosamente
por onde iria começar quando um tumulto começou
atrás dela. Na porta, vozes cada vez mais altas discutiam
algum problema de adultos.
A entrada do pai na sala foi marcada pela batida
seca da porta pesada na parede. O homem alto que
exibia um invejável bigode prateado entrou sacudindo
a cabeça.
– Isadora! Vem pro papai!
A pequena boneca se virou com seu maior
sorriso no rosto.
– Obrigada, papai! Eu amei o meu presente.
– Isadora, vem aqui, deixa eu te mostrar o
segredo do presente.
– Tem mais?
– Muito mais, minha querida – lágrimas corriam
dos seus olhos encharcando o bigode – É só vir
pro papai. Vem andando pro papai.
Mesmo animada com o novo brinquedo,
Isadora reparou que o pai fazia uma careta horrível.
Ela não percebeu, porém, que ele a esperava exatamente
onde o chão de madeira terminava, sem ousar
tocar na terra. Por um instante, o senhor de bigode
prateado achou que Isadora voltaria. Suas pequenas
pernas começaram a se virar, lhe dando um toque de
esperança. Ele esticou ainda mais os braços estendidos,
mas um pensamento ligeiro a fez mudar de ideia.
– Já vou, papai. Só quero ver o que tem atrás
da portinha vermelha primeiro. Ela é a mais bonita.
Isadora abriu a minúscula porta de entrada
para o que não era uma casa de bonecas. Em seu desespero
silencioso, seu pai registrou, segundos antes de ela
desaparecer, o olhar de felicidade da menina, que parecia
querer agradecer pelas maravilhas que via.