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Lifestyle Designer

Marcelo de Faria

Em 2016 comemora-se o centenário de Murilo Rubião, o maior mestre do realismo fantástico que
o Brasil já viu. Nada mais adequado que a data seja a da estreia de Marcelo Faria na literatura –
um autor que mostra estar atento ao irreal da vida que levamos. Todo bom texto é, de certa forma,
inesperado, mas o delírio hipnótico das próximas páginas vai além ao dar enfoque à sufocante
relação entre a busca pela produtividade e a necessidade de dormir. A escrita, ao mesmo tempo
cadenciada e fragmentada, ajuda a levar o leitor a um estado mental similar ao do protagonista,
que se perde em seu próprio mundo.

ACORDEI COM O BARULHO DA DESCARGA NA CABINE AO LADO
e instantaneamente meti a mão no bolso e saquei o celular: dezessete minutos
e quarenta e oito segundos. Não estava tão mal assim, mas sabia que ia
sentir a falta dos quase três minutos dessa soneca mais tarde.
Levantei do vaso e desci a tampa, apertei também o botão da descarga
e dei de cara com meu supervisor lavando as mãos. Me olhou através
do espelho, erguendo as sobrancelhas e esticando os lábios em um sorriso
reto. Era uma espécie de saudação, mas com um estranho toque de cumplicidade
por estarmos nos encontrando no banheiro todos os dias, no mesmo
horário. Para ele, é a hora do seu precioso cocô, enquanto para mim era o
lugar ideal para uma soneca de vinte minutos durante o expediente.
De volta ao escritório, nada havia mudado, nada havia acontecido.
Vinte minutos do que eu faço não fazem falta para ninguém e, mais que
isso, ninguém percebe minha ausência. Meu celular vibra no bolso para
marcar o que deveria ser o fim do sono. Aproveito e já habilito um novo
alerta para daqui a quatro horas puxar mais vinte minutos de soneca.
Abro minha mochila e como uma barra de cerais. Enquanto isso,
escuto uma colega dizer ao fundo que “a manhã acabou tão rápido e agora
vem a tarde tão devagar…” Me relembro do Prof. Neumann quando me
disse pela primeira vez que essa sensação de o dia passar devagar durante
tantas horas acordado era algo que não sentiria mais quando me adaptasse
aos ciclos de quatro horas acordado e vinte minutos de sono. E, de fato,
olhei de um pedestal para a colega, enquanto degustava meu café da manhã,
almoço e janta em uma única barrinha hipercalórica.
DESPERTANDO DO MEU PRIMEIRO CICLO EM CASA, ainda à
noite, saltei para a cozinha e preparei ovos mexidos. Tomei um copo de
água gelada, que, segundo o Prof. Neumann, é ótimo para acelerar o metabolismo,
emagrecer e ampliar a produtividade, se tomado logo ao se levantar
de cada ciclo do sono polifásico. Na sequência, treino físico de sete
minutos, muito mais eficaz que passar horas puxando ferro na academia e
totalmente adequado à rotina do uberman.
Liguei o PC e voltei ao trabalho. A revolução do mundo humano
não iria ser feita sozinha, afinal de contas.
O DESPERTADOR TOCOU MAIS UMA VEZ, E ARREGALEI OS OLHOS,
ainda na estação do metrô. Para evitar pausas para dormir no escritório, a
primeira soneca era a mais perigosa, de manhã cedo e antes do trabalho.
Perigosa não só pelos bancos duros e ameaças físicas de um local público,
mas, principalmente, pela boa vontade de um ou outro funcionário da estação
que me acordava com um sorriso e um papo de perder a hora. Isso era
capaz de arruinar um ciclo inteiro.
Mas não hoje. Abro os olhos e entro no
metrô, lotado de todo tipo de gente como em todas
as manhãs nesse horário. Uma garota, em pé
como eu, abre um sorriso enquanto me olha de
cima a baixo. Tento sorrir de volta, mas percebo
o motivo de ela mostrar os dentes: estou sem
calças!
“Amigão, desculpa intrometer, mas você
já perdeu dois trens cochilando, vai acabar
atrasando pro trabalho, não?” Eu tento não ficar
irritado com a tentativa de ajuda ao próximo do
amigão do metrô e confiro o celular: treze minutos
e doze segundos, quase sete minutos de energia
perdidos.
O Prof. Neumann havia dito que realmente,
no sono polifásico, você sonha cada vez
que adormece e quase sempre se lembra do que
aconteceu. Como o tempo é elástico no sonho,
é mais uma oportunidade de aprender mais e
seguir sua evolução para um passo além do humano.
E sonhar é fundamental para organizar a
memória e as lições do ciclo anterior.
Quase durmo em pé no trem. Mas desperto
com um susto ao notar uma garota abrindo
um sorriso estranho ao me olhar de cima a
baixo. Confiro as calças, tudo certo. Pego o celular
imediatamente: os números digitais ficam
loucos sempre que você está em um sonho. Mas
são 8h33 e consigo ver as horas, minutos e segundos
passando sem problemas. Preciso falar
com o Prof. Neumann, preciso urgente.
Chegando ao trabalho, entro em uma
cabine do banheiro e chamo o Prof. Neumann.
Ele me atende quase imediatamente. Sempre um
passo a frente e sempre mais sábio que o homem
comum, ele ouve minha história e diz que isso
não é extraordinário. A memória dos sonhos é
volátil e muitas vezes se adapta ao que acontece
no dia, dando a falsa sensação de premonição.
Por dormir e acordar mais vezes, eu notaria esse
efeito mais que outras pessoas. Acabaria me
acostumando, mas, se seguisse corretamente os
ciclos de quatro horas acordado e vinte minutos
dormindo, seria capaz de dominar essa característica
e usá-la ao meu favor, adquirindo uma
sensação imediata de muita prática em experiências
totalmente novas.
“Como um sonho lúcido, em que você
tem consciência total e consegue domar o ambiente
onírico à sua volta”, completou Neumann.
“Aprenda a dominar seu corpo”.
ACORDO NA CABINE DO BANHEIRO VINTE
minutos depois, cara amassada e despertador do celular
vibrando em minhas mãos. Me levanto e vejo meu
supervisor entrando na cabine ao lado – será que ele
chegou mais cedo hoje? Será que me confundi com os
horários? Ele faz a mesma expressão boba de sempre,
um sorriso que devolvo por cortesia. Tenho coisas
mais importantes para fazer do que retribuir gentilezas
no sanitário. Um novo estilo de vida repousa
em minhas mãos.
Vou para o escritório e, enquanto lido com o
trabalho intelectual-braçal cotidiano, escuto o último
podcast do Prof. Neumann, narrando seus avanços no
sono polifásico, atividades remuneradas descentralizadas,
exercícios de alta eficiência, poliamor e receitas de
dez minutos. Não temos tempo para perder, fato, por
isso, quanto mais eu otimizar meu aprendizado com
meu ganha-pão, mais próximo fico do objetivo final.
DESSA VEZ EU ACORDO MAIS CANSADO DO
que o usual. Olho o celular e logo vejo a razão: quinze
minutos e três segundos. É estranho acordar sem o
despertador, sem a descarga do banheiro e sem o segurança
do metrô. Marco cinco minutos no relógio
e durmo outra vez, sonhando com o depoimento de
como o Prof. Neumann mudou a vida de uma analista
de qualidade que se tornou uma webcelebridade com
vídeos de balé. A moça parecia contente com sua nova
vida. “Sempre quis ser bailarina, mas só pensei que
isso poderia ter sido possível quando já era impossível.
O Prof. Neumann revolucionou tudo com seu
design para meu estilo de vida”. Ela parecia feliz. Será
que um dia eu chegaria lá?
ATRASADO PARA O TRABALHO e também em
todos os meus ciclos, corri em direção ao metrô. Se
chegasse rápido, ainda poderia tentar dormir dois ou
três minutos enquanto esperava o trem – era importante
manter a estrutura básica dos ciclos, mesmo se
precisasse encurtar o sono. Afinal, ainda era a fase
de adaptação. O corpo demora quatorze dias para
se adaptar ao novo padrão de sono, seja o horário
de verão ou o método uberman. Mas, como o Prof.
Neumann havia alertado, isso poderia se estender
por meses se não acertasse a rotina rapidamente.
Chegando à estação, bem lotada e sem bancos
disponíveis, deitei em um chão mais limpo e
programei quatro minutos e doze segundos no despertador.
Antes disso o amigão do metrô me acorda:
“Sr., seu trem vem aí. E, na verdade, não sei se
pode dormir no chão da estação”. Era pouco mais de
quatro minutos, não é possível que isso se qualifica
como “dormir”. Não consigo manter a postura civilizada
e resmungo um palavrão com ele, enquanto
levanto e de fato pego o trem, mais vazio que o
usual.
Olho o despertador em vão. Números embolados.
Eu ainda estou dormindo. Acordo imediatamente
no chão da estação, suado, com um susto. Todos ao
redor me olham com espanto, e eu corro para entrar
no trem que chegava. Cheio como sempre, isso me
deixa mais sossegado. Sento-me perto da janela e me
esforço para não cair no sono outra vez.
No trabalho, meu supervisor me olha com
uma cara estranha. Confiro e sim, calças no lugar.
Me debruço no trabalho manual exaustivo de cada
dia até a minha pausa de almoço. É o tempo de sacar
uma barrinha de cereal e partir para o banheiro do
17º andar, sempre mais vazio, mas sempre com meu
supervisor e seus sorrisos idiotas.
ACORDO MAIS UMA VEZ NO CHÃO DA ESTAÇÃO,
está bem frio e me levanto com um susto. Ela está quase
vazia. O segurança bonachão está do meu lado. Eu pergunto
para ele que horas são: “Já são 11h20. Você perdeu
seu trem. Tentei te acordar, mas me xingou de tudo
quanto é nome enquanto voltava a dormir e mexia no
celular”, comentou o funcionário uniformizado, achando
graça na minha grosseria e no karma de, teoricamente,
me dar mal.
CHEGANDO AO TRABALHO,
poucos notam meu atraso, mas
meu supervisor me chama em
um canto e diz que não é um
problema, desde que compense
encurtando a hora do almoço
“e a do cocô”. Finjo que acho
graça na piadinha, mas no fundo
estou preocupado com a
rotina e meus ciclos de sono.
De volta à minha estação de
trabalho, eu puxo o celular e
chamo o Prof. Neumann.
CHEGO EM CASA JÁ DURANTE
a noite, e a explicação brilhante
do Prof. Neumann ainda ecoa
em meus ouvidos. Loops de
sonho como o que aconteceu
comigo são criados quando
o subconsciente se separa da
mente para realizar tarefas
que ficaram para trás ou para
buscar objetivos que geram
grande expectativa na pessoa.
Muitas vezes se repetem
e confundem a consciência
para que a unidade corpo/
mente consiga um descanso
restaurador. A única forma de
evitar isso era com uma rotina
estoica, disciplina. Ou seja,
precisava apenas forçar meu
corpo a aceitar meu novo estilo
de vida e seguir as regras
estritamente. Quatro horas
acordado e vinte minutos dormindo.
Era simples.
Faço meus treinos físicos,
ovos mexidos e consigo
dormir vinte minutos exatos
na sequência. Abro meus
livros e volto minhas atenções
para meu grande projeto, uma
solução que levará o homem
muito além do que uma rotina
de trabalho das 8h às 18h
e uma vida com sonhos e
relacionamentos bidimensionais
permitiriam.

O BARULHO INCESSANTE DO despertador
me acorda e corro para o metrô. Entro no
vagão e percebo que pulei os vinte minutos de
soneca. Olho para o lado e uma garota estranha
sorri para mim. Ela se aproxima e abre
a boca como quem vai falar algo, mas não:
mastiga meu crânio e devora minha mente
em duas mordidas, acordo com o som dos ossos
se partindo e o barulho de um outro trem
chegando. Eu ainda estou no chão da estação.
O segurança está debruçado sobre mim: “Sr.
Neumann, seu trem vem aí. E, na verdade, não
sei se pode dormir no chão da estação”. Eram
pouco mais de quatro minutos, não é possível
que isso se qualifica como “dormir”. Resmungo
algo e ele gargalha: “você me pediu para
acordá-lo neste horário, a culpa é sua, tudo
que faço aqui é ajudar”. Ajeito minhas coisas
e subo no trem.
Olho o despertador e faltavam ainda
dois minutos de sono. Mas não estou tão cansado.
Uma moça sorri para mim e se aproxima.
Abre a boca como quem quer falar algo,
mas não consigo ouvir muito bem. Ela chega
perto do meu ouvido, como se fosse me atacar:
“Prof. Neumann, seu método é excelente!
Sigo suas redes sociais e posso dizer que seu
metódo mudou minha vida. É como se a humanidade
pudesse dar um passo além”. Eu me
assusto e perco o equilíbrio, ela me agarra no
braço e cochicha no meu ouvido, um tom de
voz de ameaça completamente mesclado ao
tom de voz de um comercial de pasta dental:
“sempre quis ser bailarina, mas só pensei que
isso poderia ter sido possível quando já era
impossível. O Prof. Neumann revolucionou
tudo com seu design para meu estilo de vida”.
EU ACORDO COM O BARULHO DA descarga
ao lado. Nunca com o cheiro, sempre o barulho.
Confiro o celular e saio de lá com pressa. Um
homem faz um sorriso bobo, compartilhando
aquele momento de intimidade escatológica.
“Brilhante palestra, professor. Às vezes ficamos
perdidos na nossa rotina e fechamos os
olhos para os outros estilos de vida possíveis.
Nunca é tarde para mudar, não é mesmo?”.
Sorrio de volta. “Sim, o tempo e a
memória são mais voláteis do que aparentam.
Nunca é tarde mesmo”.

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