AB Astra ou das estrelas
Rodrigo Diniz
O gênero ficção científica começou com uma vontade de detalhar o funcionamento de robôs
imaginários em prosa. Agora que as máquinas são reais, a literatura evolui. “Ab Astra”, de Rodrigo
Diniz, é um exemplo perfeito disso. A história se passa em uma espaçonave, em um futuro distante,
onde distopia é uma palavra de significado perdido – pertence a uma época menos horrível. E
nos corredores silenciosos e aparentemente vazios da nave surge o que restou da humanidade. Em
vez de focar nas incríveis capacidades dos robôs que o cercam, a narrativa gira em torno de algo
mais interessante: como um ser humano lida com o vazio dentro de si.
Estava sozinho . Não via seus colegas havia tanto
tempo que já era difícil lembrar-se de suas feições. Também não conseguiria
dizer exatamente quanto tempo havia se passado desde a última
vez que se aventurara a sair de sua câmara, afinal, é difícil medir
o tempo em uma espaçonave, viajando pelas estrelas.
As luzes e os monitores que outrora lhe davam informações
estavam apagadas ou defeituosas. Os brilhos prateados e claros, que
faziam daquela nave o orgulho da humanidade, agora davam lugar
ao sépia intermitente e à escuridão.
“O que aconteceu?” Essa era a pergunta que ele, por vezes, se
dava ao trabalho de fazer. A resposta que tinha era sempre a mesma:
não sabia, e, mesmo se soubesse, pouca diferença a resposta ia fazer.
Sabia que, antes, a espaçonave era guiada por um conselho de capitães
e, agora, estava sob o comando de uma inteligência artificial, e, de alguma
forma, tinha certeza que ela estava por trás de tudo aquilo.
Toda aquela mudança, sua designação para um novo posto,
todas as pessoas que sumiram… Era a única explicação que fazia sentido.
Afinal, a inteligência artificial controlava tudo. Cada refeição
naquela espaçonave era controlada por um sistema de demanda e recursos
disponíveis. Era feito o monitoramento de seus ciclos de sono
de modo a otimizar o funcionamento da equipe. Havia, inclusive, um
elaborado sistema de aplicação de gases em cada câmara, de modo a
sutilmente estimular o ciclo de sono correto dos tripulantes. Quem
sabe quais outros propósitos aquelas substâncias serviam?
Mas, além de todas essas preocupações, algo mais o aterrorizava.
Em breve ele teria que fazer aquilo que o pouco bom senso que
lhe restara implorava para não fazer. Logo ele teria que sair de sua
câmara. Sua última lata de rações havia terminado, e ele sabia que se
demorasse mais para procurar mantimentos suas forças poderiam
não ser suficientes.
O botão ao lado da porta foi pressionado, sem resposta.
Puxou a alavanca de tranca complementar, e a porta se moveu. O
corredor escuro que se apresentou não lhe era familiar. Seria possível
que seu anfitrião rearranjara a configuração das salas? Ou que movera
sua câmara enquanto dormia? É claro que era possível. O que
aquela abominação eletrônica não conseguia fazer?
As portas que via, entreabertas, revelavam câmaras não
diferentes das dele. A maioria vazia. Os poucos estranhos que via
pareciam dormir aquele coma induzido pelas drogas controladas pelas
máquinas. Os odores fortes e pútrefos que por vezes sentia denunciavam
que esse nem sempre era o caso e que alguns deles estavam,
de fato, mortos, certamente aguardando alguma máquina retirar de
lá seus restos, que seriam alimentados às fornalhas em algum canto
da nave. Nada ali era desperdiçado. Nenhum esforço,
nenhum nutriente, nenhum pensamento.
Passos cansados o levaram pela espaçonave.
Tentava lembrar-se de caminhos ou indicações que pudessem
levá-lo até a câmara de mantimentos. Câmeras
o observavam. Estariam ativas? Conseguiriam vê-lo
naquela penumbra?
Foi quando deparou-se com mais uma porta,
novamente aberta pela alavanca de emergência, que viu
algo dentro que fez seu coração parar. A luz lá no interior
não era como a de fora. Havia um tom azulado em
tudo. Telas de computador se alternavam em mostrar
textos que, para ele, eram incompreensíveis. Algo o
fez entrar, e, antes que conseguisse reagir, a porta se
fechara atrás dele. Uma câmera, iluminada por uma luz
vermelha, o observava de cima.
– Olá, Anderson. Que bom que você está aqui.
Não… Como? Como havia chegado até aqui? Até
a câmara da inteligência artificial? Agora tinha certeza
de que sua existência, sua sobrevida, não era só mais
uma variável esquecida em seus bancos de memória.
– Diga-me, Anderson, como posso atendê-lo?
Não sabia se máquinas eram capazes de ironia.
Queria mesmo era voltar para casa. Nada mais naquela
missão fazia sentido, mas duvidava que seu carcereiro
fosse deixá-lo sair. Também sequer sabia se havia algum
módulo de escape disponível capaz de levá-lo de volta.
A máquina aguardava resposta.
– Eu… estou com fome. – Disse sua voz fraca.
– Você não deveria ficar andando. Volte para os
seus aposentos e será servido.
Que conveniente. Voltar para sua câmara era tudo
o que a inteligência artificial queria, onde ele poderia ser
devidamente alimentado com quaisquer entorpecentes
que fossem necessários para deixá-lo catatônico.
Não. Não voltaria. Não agora, que conseguira
chegar até ali.
– Não.
A câmera o observou, de certo o analisando,
medindo suas reações, a dilatação de seus olhos, seus
batimentos cardíacos…
– Algum problema, Anderson?
– Eu… Vocês me mudaram de lugar, certo?
– Sim. Você foi realocado. Foi necessário.
– Eu não quero ficar aqui. – A determinação de
suas palavras surpreendeu até ele próprio. Talvez tivessem
sido ditas mais alto do que gostaria, e duvidava que
essa determinação fosse capaz de comover a máquina.
Duvidava que qualquer coisa fosse comover a máquina.
– Anderson… Nós conversamos sobre isso. Você
concordou.
Concordara, de fato. Com a missão. Explorar
as estrelas, ver o que ninguém havia visto antes. Mas
aquilo? O que quer que fosse a crise que viviam, duvidava
que deixar uma máquina no comando seria
o melhor para todos. Afinal, o que ela fizera com os
outros comandantes?
– Você está no controle aqui, não está?
A máquina pareceu hesitar por um momento.
– De certa forma, sim.
– E quanto aos outros?
– Eles também, Anderson. Você sabe que tudo
aqui é regido por um conselho, com várias pessoas envolvidas.
Mentiras. Mentiras deslavadas. Afinal, como
poderiam ainda estar os outros comandantes controlando
alguma coisa com a espaçonave naquela situação?
O que acontecera com ele nos últimos… sabe-se
lá quantos dias… jamais seria possível com os capitães
que conhecia.
– Eu… Eu quero as coisas como eram antes.
Antes de você. Ou, então, quero voltar pra casa!
– Você sabe que isso não é possível, Anderson.
Você jamais conseguiria voltar para casa por conta
própria.
Mais mentiras. Sabia que a espaçonave possuía
módulos de escape, pequenas cápsulas, com capacidade
para algumas poucas pessoas. Elas poderiam
levá-lo de volta à Terra, à sua casa.
Talvez fosse algo em seu olhar que o denunciara.
Talvez seu batimento cardíaco ou a respiração pesada.
Não achou que a máquina fosse entender tudo
assim, tão rápido. Sabia que só havia uma coisa sã a
fazer.
Correu. A porta da câmara se abriu com a alavanca
de emergência, e os corredores se apresentaram
escuros e vazios como antes. Corria com uma facilidade
estranha, como se a gravidade artificial estivesse
um pouco mais fraca naquele momento. Ouvia os gritos
desesperados da máquina de sua câmara.
Não demorou até que as contramedidas fossem
acionadas. Das paredes, painéis se abriram, e braços
mecânicos tentavam contê-lo. Por sorte, a pouca força
que ainda tinha foi suficiente para desvencilhar-se
daquele toque frio.
Os passos agora eram mais rápidos, mais determinados.
Seus olhos viam nos corredores as indicações
para os módulos de escape, os chamados “botes
salva-vidas” da espaçonave. Sabia qual caminho
tomar. Só esperava conseguir chegar lá a tempo.
Mais painéis se abriram, de todos os lados
de seu caminho. Desta vez, as contramedidas foram
mais drásticas. As máquinas eram mais fortes. Por
um momento, sua pele foi alvejada por um braço de
aplicação química, mas conseguiu se libertar dele
antes que as toxinas da máquina o capturassem.
Enfim, encontrou. O módulo de escape se
projetava para fora da nave como uma bolha de
vidro, ligado apenas por um tubo fino, que Anderson
atravessou sem dificuldades. A porta de entrada
cedeu sem muito esforço, e o módulo de escape
o saudou com o conforto e o espaço de um veículo
para cinco pessoas. Lembrava-se vagamente de
como operar aquela pequena nave e sabia que o pior
havia passado. Botões, chaves e alavancas, e a máquina
moveu-se. Viu o vazio do espaço o saudar e sentiu
o corpo leve quando afastou-se do campo de gravidade
artificial da nave mãe.
Foi quando sentiu algo estranho. Sua mente,
como seu corpo, também estava leve, e seus olhos
pesados. Seu corpo amoleceu.
É claro. Havia dois modelos, e esse era o
melhor dos dois, em que os tripulantes eram transportados
em um estado de criostase. Adormeceu
com um sorriso no rosto, sabendo que a próxima
coisa que veria seria seu planeta. Isso se tudo naquela
viagem automatizada desse certo, é claro.
***
A fazenda pacífica tinha campos verdes, tingidos
de laranja ao entardecer. Havia um enorme
casarão no alto de uma colina, e as primeiras estrelas
já começava a aparecer no céu. Médicos caminhavam
pelos longos corredores com prontuários e
remédios.
Em um dos quartos, um homem pálido, com
os cabelos desarrumados, sentava-se inerte ao lado
da janela. Sua boca entreaberta não se movia. O único
sinal de vida naquele homem eram os olhos, que
observavam as estrelas com um fascínio infantil.