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Jesus, Josias e Josiclei

João Renato Faria

Ainda falta correr muita água debaixo da ponte para que o Brasil desenvolva um estilo literário com
identidade própria. Porém, alguns autores mais corajosos já começaram a desbravar esse caminho e,
agora, João Renato Faria se une a eles. O conto das próximas páginas narra uma história que poderia
ter acontecido com qualquer criança brasileira nos anos 90: um trote descompromissado a todos
os “Jesus” listados na finada lista telefônica. A brincadeira, movida por uma curiosidade de origem
religiosa e que passa pela inocência de um bullying praticado, é um retrato fiel do que viria a ser
chamado de geração zoeira. Principalmente por causa de seu fim violento.

Enquanto a professora de geografia explicava a
diferença entre a mata atlântica e a floresta amazônica, eu tive um desmaio
na sala de aula. Foi a primeira vez que andei de ambulância e,
no hospital, me reviraram do avesso. Fiz exames por seis meses até os
médicos se darem por satisfeitos de que eu não tinha nenhuma doença.
O que eu tinha na verdade naquela época, e nenhum exame
conseguiria descobrir, eram duas obsessões: trotes telefônicos e o jornal
“Diário da Tarde”. Não era exatamente um tempo pré-internet, mas
ter computador, um modem barulhento e grana para pagar a extorsiva
conta de telefone após ficar horas dependurado tentando acessar um
reles e-mail tornavam a rede um luxo um tanto quanto inacessível para
um moleque de treze anos.
Por isso, alguns dos artefatos típicos daqueles dias me ajudavam
na hora de exercer o primeiro hobby: um telefone público, que as pessoas
chamavam de orelhão, e a curiosa lista de assinantes. Eu sei. Falando
assim, parece uma coisa meio louca, mas houve de fato um tempo
em que os nomes de praticamente todo mundo da cidade estavam em
um livro imenso, em ordem alfabética e com os números de telefone de
suas casas.
Já o jornal era o jeito de acompanhar as notícias. Ele custava
menos de um real, valor que eu conseguia subtrair do dinheiro do
lanche que recebia para comprar, religiosamente todos os dias, uma
Fanta laranja e um enrolado de salsicha. Comi tanto dessas duas coisas
que é um milagre que não pesasse algo em torno de três dígitos ou sofra
hoje de sequelas provocadas pela ingestão de corante amarelo crepúsculo
ou o que quer que eles colocassem nas salsichas naquele tempo.
Uma das características do jornal é que ele era mais popularesco
do que os seus concorrentes, que ainda mantinham aquele verniz de
seriedade que só um jornalão dos anos 90, com edições dominicais que
pesavam em torno de dois quilos e tinham 400 páginas, podia ter. Ou
seja, ele era o famoso “se torcer escorre sangue”. A principal responsável
por isso era uma página que tinha o versal “Polícia” e se limitava a
resumir, com pobreza de detalhes, alguns dos boletins de ocorrência
mais escabrosos que haviam afligido a cidade na noite anterior. Quem
atravessava aquele pântano de flagelos encontrava, no verso, uma página
de humor chamada “Bitoque”, que, teoricamente, deveria fazer a
transição entre um assunto escabroso e um mais leve,
que era o futebol.
Obviamente, não dava certo. Primeiro, porque,
não raro, o futebol daquela época conseguia ser mais
tenebroso do que alguns crimes. Segundo, porque era
uma mudança abrupta demais. Passava algumas horas
admirando aquele curioso cara e coroa de risadas e
morte. Como aquilo compartilhava a mesma página?
Quem havia decidido que sangue e humor habitariam
o mesmo pedaço de papel? Como rir das piadas após
ler que quatro pessoas haviam sido baleadas? Ou, para
quem lia o jornal primeiro pela parte de esportes,
como evitar ainda rir após ler aquela ótima do papagaio
enquanto se deparava com manchetes como “Arranca
a cabeça e guarda na panela de pressão”?
Foi lendo o “Diário da Tarde” que eu resolvi
que queria trabalhar em jornal. Sonhava com o dia
em que eu ia gritar “parem as máquinas!” para depois
escrever uma matéria urgente na sangrenta página
de polícia, com títulos cheios de trocadilhos que
eu inventava na hora, como “Atropela seis e morre na
Praça Sete” ou “Explode colégio após tomar bomba”.
Quando o jornal acabou, foi como se eu tivesse perdido
um parente. Dependendo do parente, na verdade,
a sensação foi até pior.
Quando não estava dando plantão como o
redator sênior imaginário do “Diário da Tarde”, me
tornava uma espécie de telemarketing do mal, se é
que tem algum telemarketing que é do bem. Com
um humor influenciado pela cultura trash que estava
em alta nos anos 90, eu me mijava de rir das coisas
mais imbecis. E existem poucas coisas mais deliciosamente
retardadas do que ligar para a casa de algum
desconhecido, perguntar se existe um fusca verde (os
fuscas, meu deus, o que será que foi feito deles?) parado
na porta e, após o abnegado interlocutor perder
alguns segundos indo conferir (não, nunca tinha um
fusca verde parado na porta), começar a rir e soltar
a frase “então é porque já amadureceu hahahahahahahahaha”.
A coisa da cultura trash entranhou de tal
modo que, mesmo hoje, esboço um sorriso ao imaginar
o maldito fusca verde.
Por isso, se existisse algum tipo de competição
no assunto, eu deveria estar olhando agora para os
meus troféus e medalhas. Conseguia extrair o máximo
de irritação com o mínimo de palavras. Contribuía
bastante para o nervosismo dos interlocutores o fato de
nunca ter feito um trote que não fosse a cobrar, já que,
obviamente, não ia usar o telefone da minha casa para
cometer esse delito infantojuvenil, pois existia na época
a ameaça de um aparelho misterioso que registrava o
número de quem ligava, se chamava Bina. Além disso,
não tinha dinheiro para gastar em fichas.
Foi nessa época que percebi que seria muito engraçado
ligar para todos os Jesus (Jesuses?) da lista de
assinantes. Era uma piada fácil demais para não ser feita.
Os diálogos que se seguiam eram de uma pobreza criativa
que fariam um membro do Monty Python se matar
de vergonha alheia, mas funcionavam bem para mim.
– Alô, é da casa do Jesus? Ele pode falar agora? Não?
Ah, é porque ele deve estar pregadão.
– Jesus? Bom dia, eu precisava de um milagre, acabou
o vinho da festa aqui em casa.
– Eu queria falar com o Jesus, é o Judas, amigão dele…
E por aí vai. O melhor é que as respostas
eram, invariavelmente, palavrões. E a ironia de ouvir
Jesus mandando alguém ir tomar no cu era demais
para quem estava impregnado de todo aquele humor
retardado. Com tempo de sobra nas mãos, já que as
tardes eram livres e quase infinitas naquele início de
adolescência, fiz o óbvio: liguei para todos os Jesus da
cidade. Se o nome da vítima for algum diferencial, garanti
um lugar bem quentinho no inferno com essa.
Depois de falar com Jesus Zenóbio, o último
da lista, fiquei um pouco desalentado. E agora? Bastou
passar algumas páginas e, como a mágica da página
sangrenta e da página de humor do “Diário da Tarde”,
não pude deixar de sorrir quando vi três imensas colunas
do nome das próximas vítimas: Josias.
Não sei se é a sonoridade. Se é o jeito de falar.
Se é o já citado péssimo gosto para humor. Só sei que,
depois do “chamada a cobrar, após o sinal fale o seu
nome e sua cidade”, ouvir o cara falar que era o Josias,
me fazia rir descontroladamente. E trote é igual
crack, quando mais você faz, mais quer fazer. Mal li
o “Diário da Tarde” na semana em
que passei pendurado no orelhão.
A sequência acabou muito rápido,
e eu, como um viciado, precisava
de algo melhor e mais forte. Foi
quando o meu destino cruzou com
o de Josiclei, o único da lista com
esse nome. Mal podia conter as risadas
ao ligar para ele, já esperando
o tradicional desfecho. Mas não
estava preparado para o que viria a
seguir.
– Alô, Josiclei?
– Sim, quem é que está falando
hein?
– Haha, seu nome é Josiclei?
– Quem é que está falando? Hein,
seu filho da puta?
– Ah, Josiclei, com um nome desses
e você não sabe quem eu sou?
– Porra, é você, Rogério? – Não,
não era, mas não perdi a chance.
– Sou eu, e aí, Josiclei?
– Desgraçado, você está se encontrando
com a minha mulher
e ainda me liga a cobrar para me
insultar!
O barulho ensurdecedor
que se seguiu, eu descobri depois,
você só consegue se jogar com bastante
força um gancho daqueles
bem antigos e pesados, que não se
vê mais hoje em dia, contra uma
parede. O grito que ouvi através da
linha depois desse estouro era, definitivamente,
feminino.
– Não, eu nunca mais vi o Rogério,
não sei porque ele está me ligando!
– Sua mentirosa, vadia, aquele
filho da puta está no telefone agora
e me insultando, vou te mostrar o
que é bom.
Já os três barulhos ensurdecedores
que se seguiram você só consegue
se bater com bastante força um
pedaço de pau contra um crânio
humano.
Minha reação inicial foi pensar
que Josiclei era um gênio. Já havia
recebido tentativas de contra-atacar o
trote, mas nunca uma havia sido tão
bem-feita. Parecia até ensaiada. Será
que ele já tinha trabalhado no rádio?
Aquela sonoplastia da pancada tinha
ficado muito verossímil. Depois, como
ele não voltava ao telefone para me
desmascarar como um péssimo passador
de trotes, fiquei preocupado.
Os barulhos do outro lado da linha
haviam cessado, e decidi cruzar uma
barreira ética que havia definido para
mim mesmo e liguei para a polícia.
Falei apenas apressadamente o que eu
ouvi, o nome do sujeito e o telefone
dele antes de bater o gancho e sair correndo.
A notícia que encerrou de
vez minha carreira de trotista estava
estampada no “Diário da Tarde” do dia
seguinte, que comprei assim que saí do
colégio.
“Mata a mulher após telefonema”.
O texto detalhava como o
amante da vítima havia ligado para
a residência e insultado o marido
dela, até que o sujeito, descontrolado,
pegou um cabo de vassoura e acertou
a mulher, Maura Aparecida da Silva,
de 45 anos, três vezes, antes de tentar
fugir. Uma denúncia anônima fez com
que a polícia chegasse ao local antes
da fuga do suspeito, Josiclei Wander
Pereira, de 49 anos, que confessou o
crime. O amante ainda seria procurado
e ouvido pelos investigadores.
Engasgava enquanto lia o texto
e decidi que, pelo sim, pelo não, o
melhor mesmo era aposentar o dedo
mais nervoso do telefone brasileiro e
dar um tempo nessa história de passar
trotes. O frio na espinha e a sensação de
boca seca duraram até que eu virasse a
página, já que, no “Bitoque”, havia uma
de português ótima, uma pena que eu
não lembro, senão contava para vocês.