Repouso
Larissa Lima
Peppe viveu noventa anos intensos. Agora, em seu leito de morte, vemos o exato momento
em que ele passa a sabedoria de uma vida para outra geração, que deve aprender a ter
coragem, como aquela mostrada por Peppe em suas décadas de aventuras. Na história de
Larissa Lima, uma jovem encara essa tarefa e, rejeitando a função de carpideira, relembra e
celebra os momentos mais emocionantes da existência de Peppe, um antigo soldado italiano
que se despede, sem tristeza, de uma vida que lhe proporcionou glória, arrependimento,
aventura e, o mais importante, amor.
Ela olha nos olhos dele , pequenos e azuis, e se pergunta
se foram sempre pequeninos assim ou se é o passar da vida que os diminui,
devagar…
– Você é a mais bela do mundo!
– Do mundo inteiro? Ela responde sorrindo.
– Sim! Do mundo inteiro!
É assim, todas as vezes.
Ao seu redor, outros como ele: peles enrugadas, delicadas, olhares
cheios de nostalgia e devaneio, perdidos entre o que restou da memória e
a fantasia do que nunca foi. As famílas estão em casa, no trabalho, imersas
nas próprias vidas que vão se consumindo.
– Peppe, estou pensando em saltar de paraquedas. O que você
acha?
– Vai! Está esperando o quê?
– Vou!
– Vai ser paraquedista! É… Como se diz? É uma coisa bela! Bela,
bela, bela!
– Também acho que deve ser!
– Você encontra a alegria, a força, a coragem, a motivação pra
enfrentar o depois… Você encontra tudo ali, no ar.
– E como eu faço pra não sentir medo?
– Medo? Ah! Você só tem que ir!
– Sem pensar muito, né?
– Não tem que pensar! Não precisa! Mas se você tem medo mesmo
e daqueles que não dá, então deixa pra lá que isso não é pra você! O
para.. eita! Ficou difícil falar. O pa-ra-que-dis-ta é paraquedista dentro.
Eu nunca repensei. Nunca amarelei. Nunca desisti.
– Nunca?
– Nunca! Nunca, nunca e nunca!
Depois de uma infância e juventude passadas e sofridas em um
reformatório, servir ao exército lhe pareceu uma chance de viver. Dolorosa
antítese. Aos dezoito anos, ir ao encontro da morte para buscar
a vida. Ela nunca soube por que ele não pôde crescer em uma família.
O que ele respondia quando o neto perguntava sobre a sua infância era:
“uma fome… quanta fome!”. Agora, seus noventa anos não mereciam ser
interrogados na lembrança doída. Ela prefere perguntar do que ele gosta
de lembrar.
Segunda Guerra, ele, italiano calabrês, começou imediatamente
como paraquedista. Combatia pelo exército fascista, sua tropa foi enviada
em uma missão para combater contra a Resistência Italiana. Se dar
conta de que ali ele estava lutando contra os próprios italianos, atirando
e matando seu próprio povo, quase o fez enlouquecer. E ali ele resolveu
fugir, mudar de lado, de ideal. De militar fascista ele passou a ser combatente partigiano. Abandonou o
uniforme nas montanhas geladas do
norte italiano. Quase nu, não pensou
no frio. Seu sangue havia congelado
quando ainda estava fardado.
E aqui a lacuna, ele nunca
contou como foi o encontro com os
novos guerrilheiros, companheiros
de luta. Mas contou que foi abrigado
pela família de um deles, ficaram
escondidos no porão enquanto
os pais de seu amigo afirmavam
desconhecer o paradeiro do próprio
filho para o exército. Arriscaram a
vida para protegê-los sem saber que
além de pais, depois daquele encontro
eles se tornariam sogros. Naquela
casa, Peppe se apaixonou por Ester,
sua futura esposa.
Aquele tempo passou. Entre
os horrores vividos, as grandes
emoções, os encontros e decisões
marcantes, ficou também na sua
memória a beleza do salto de paraquedas.
Nem o frio nos ossos
daquele inverno rígido, nem o barulho
ensurdecedor da guerra, nem
o terrível cheiro da morte cruel
poderiam apagar a maravilhosa sensação
daqueles voos, de cada salto,
do vento a 200 quilômetros por hora
que enchia os pulmões e o coração
de esperança e coragem.
São quinze anos sem Ester,
que já não aparece muito em suas
lembranças cansadas e confusas. Ao
seu redor, pessoas que, como ele, precisam
ser cuidados. Uma família de
desconhecidos que compartilham as
refeições, as lembranças e histórias
desconexas, os devaneios, a falta
de sentido, a falta de viver. E como
diz seu neto, naquele lugar todos
parecem passarinhos. Passarinhos
enrugados, equilibrados no fio da
vida, esperando um pouso que seja
repouso.
O poeta Alfio já não escreve
mais poesias, o ator de chapéu se esqueceu
de seus filmes, mas não de
sua elegância e de suas impecáveis
gravatas, a senhora Elena chora a falta
da filha que a visita todos os dias,
porque não se lembra que veio. A
senhora Giulia quase não fala, pia,
mas seu sorriso sem dentes comunica
doçura, seu olhar é ternura, um
pouco doído, pede abraço. A pequenina
Anna Maria, sempre perfumada,
já não conta mais piadas, só quer
encontrar o marido que a espera do
lado de lá.
Peppe não é mais calabrês,
ela não sabe nem se ele se lembra
de um dia ter sido. Ele é romano e
romanista apaixonado. Ela não o
conheceu quando era duro, embora
ainda seja calado. O conheceu doce,
diante de um belo sorriso ele se
derrete. Ele também não se lembra
quando ela e o neto o visitam, ainda
que tenha sido ontem, ele diz não
vê-los há tempos. Mas nunca reclama,
é sempre e simplesmente feliz
pelo reencontro. Diz ter saudade da
marcenaria, o trabalho de sua vida
adulta pelo qual tem tanto carinho.
Não combate mais contra os nazifascistas.
Não caminha ao longo
das margens do Tevere, mas conta
que se pudesse, “ah!”, ele faria toda a
caminhada, do início ao fim, ao lado
de seu querido rio.
E, então, Peppe quer voar.
Diz que basta. Deixa para trás
a poltrona e os passarinhos. Chama
seus cúmplices nessa aventura.
Parte com o neto e a sua bela que o
acompanham no voo. Sobem 12.000
pés, ele sorri, os olhos brilham, se diz
felicíssimo! Diz ser o mais feliz do
mundo!
Olha nos olhos do neto, põe
a mão afetuosa em seu rosto e lhe diz:
“Tchau, nonno! Muito obrigado por
tudo!”. Olha pra ela e diz: “Como você é
bela!”. Os três se abraçam forte, dizem o
quanto se gostam, o quanto se querem
bem.
Peppe é o primeiro a saltar. Todos
sorriem. Escapa uma lágrima.
Ele voa.