As quedas
Laura Cohen Rabelo
No futuro, quando as pessoas fizerem filmes sobre isso, as cenas serão as mesmas que aqueles dois estavam enfrentando às quatro da manhã.
O homem tinha ido dormir cedo, por volta das nove, por isso acordou bem disposto às quatro, quando o velho despertador de corda tocou.
A mulher mal dormiu. Tentou se deitar às onze, mas só pegou no sono à uma da manhã; arrastou-se para fora da cama às quatro.
O homem colocou água para ferver e terminou de arrumar suas poucas coisas, que ficaram frouxas na mala grande.
A mulher tinha arrumado sua mala de madrugada. Também ficaram frouxas na mala grande.
Não havia coisas o bastante.
Havia objetos na casa de cada um que eles adorariam levar para o exílio, mas não conseguiram resgatar muita coisa antes da batida.
O homem passou o café.
O homem e a mulher tomaram, cada um, uma xícara de café.
Não tiveram apetite para comer o bolo que tinha ficado na vasilha, assado na tarde anterior.
A mulher colocou a vasilha com bolo na sacola.
A mulher fizera o bolo na tarde anterior porque estava ansiosa.
O homem, que tinha sido barbudo com cabelos cacheados e crescidos, livrou-se da barba dias antes, deixando um bigode. Ao se apresentar à porta do quarto da mulher, ela torceu a cara para o bigode, de forma que o homem resolveu se livrar dele também.
Quando ele estava com a cara lisa, a mulher pegou a tesoura da cozinha e cortou os cabelos do homem bem curtos.
Foi um bom corte, o homem gostou e perguntou como a mulher aprendera a cortar cabelos, e ela disse que tinha três irmãos mais novos.
O homem varreu os cabelos cacheados que tinham ficado no chão.
Jogou-os no lixo.
A mulher descoloriu o cabelo. Célia apareceu e ajudou a lavá-los na banheira, antes de cortá-los bem curtos e secá-los. A mulher se olhou no espelho e achou que tinha ficado bem loira, apesar de ter sobrancelhas grossas e castanhas.
“É fresquinho assim”, disse a mulher a Célia, batendo com as pontas dos dedos na nuca descoberta.
Célia tirou fotos do homem e fotos da mulher com sua câmera, fez recomendações de segurança e foi embora.
As fotos tinham ares oficiais, usando como fundo a parede branca da sala.
Para sua foto, a mulher usou um vestido preto de mangas compridas, um lenço azul amarrado no pescoço, brincos elegantes e pouca maquiagem.
O homem usou camisa branca, gravata cinza e um paletó escuro.
O homem disse que deveria ter deixado o bigode, disfarçava mais a cara.
A mulher não disse nada, acendeu um cigarro.
O homem não fumava.
A mulher fumava pouco, mas agora tinha acendido o segundo cigarro, ainda sem se livrar do figurino.
O homem tirou a gravata. Agora estava tomando sua terceira caneca de café do dia.
“Desse jeito você vai passar mal”, a mulher disse sem desviar os olhos do livro.
A mulher gostava de ler biografias de pessoas que passaram por tempos sombrios.
A mulher reclamava que havia mais biografias de homens brancos célebres do que de mulheres ou pessoas negras; sendo que os tipos menos biografados passaram por tempos ainda mais sombrios.
O homem imaginava a si mesmo indo a uma livraria e voltando com a biografia de Ada Lovelace, Marie Curie ou Angela Davis para dar de presente à mulher.
O homem e a mulher discutiam o que poderiam fazer para esconder a si mesmos à vista das pessoas para fazer a fuga.
Roupas mais conservadoras?
“Você diz coisas muito interessantes!”, o homem falava quando queria chamar a atenção da mulher. Ou quando queria irritá-la.
De fato, a mulher passava muito mais tempo em silêncio do que conversando.
Célia voltou dali a uns dias com os passaportes e um par de alianças.
“Vocês são casados”, disse Célia.
O homem olhou para o passaporte novo, emitido sob um nome que não tinha sido herdado de uma família, mas que uma mente engenhosa e clandestina tinha inventado e registrado falsamente.
Talvez um dia plantassem um jardim para essas pessoas, os grandes
justos, que salvaram pessoas que poderiam ter sido torturadas até enlouquecer, presas e/ou mortas.
Talvez esquecessem o nome dessas pessoas de mente engenhosa e clandestina.
Talvez essas pessoas também fossem encontradas, torturadas até enlouquecer, presas e/ou mortas.
A mulher examinou os passaportes novos e percebeu que seu último sobrenome novo era o mesmo que o sobrenome novo do homem.
Naquele contexto, às vezes “novo” era sinônimo de “falso”.
As alianças serviram bem nos dedos anulares do homem e da mulher.
Célia disse que usassem as alianças a partir de então, para que não parecessem tão novas.
Ambos estavam acostumados às alianças. Estavam acostumados a elas até quando se rompiam.
Havia também a nova certidão de casamento, recente e excepcionalmente bem-feita.
Disseram que o papel vinha de um cartório de verdade.
Eles tinham agora que recitar nomes, datas, descendências e lugares de nascimento.
Ficaram aprendendo outra língua a duras penas e com má vontade.
Je suis tu est il/elle est nous sommes ils sont.
Ich bin du bist er/sie/es ist wir sind ihr seid.
Célia disse: “É só para sair do país. Depois vocês podem voltar a ser vocês mesmos”.
A mulher estranhou a colocação, afinal sabia que “ser vocês mesmos” era algo vago e impossível. Principalmente depois da queda. Talvez ela estivesse se referindo a dados físicos, nome, data de nascimento, número de identidade.
Quantos dias, muitos dias? Não culpavam aqueles que disseram seus nomes.
Tudo bem.
Sob a dor, eles também seriam capazes de dizer muitos nomes.
Também por isso fugiam.
Antes do dia em que acordaram às quatro da manhã, eles passaram lá muitos dias tentando fazer silêncio e não enlouquecer.
No quarto da mulher havia uma cama com um colchão mole demais.
No quarto do homem havia um colchão no chão.
O homem ligava o rádio bem baixinho.
Não podiam trocar os lençóis com muita frequência porque Célia às vezes demorava a aparecer. Certa vez, o homem lavou os lençóis na pia da cozinha e estendeu-os num varal improvisado. Não secaram muito bem.
A mulher espirrou o dia inteiro e depois, à noite, dormia em lençóis úmidos.
Várias vezes tiveram medo de que Célia também caísse.
Quando fazia calor demais e quando chovia, a mulher colocava o nariz para fora da janela e o homem ficava lendo os jornais que Célia trazia.
Era o décimo andar de um prédio grande, com oito apartamentos por andar.
A vista dava para o nada, poderiam andar nus, se quisessem.
Aprenderam que era mais fácil se esconder diante dos olhos das pessoas.
Célia levava a comida.
Os dois cozinhavam.
Quando havia verduras e legumes, o homem fazia uma sopa saborosa.
A mulher fazia bolo, todo batido à mão, pois não tinha batedeira.
Bolo de nada, só ovos, farinha, açúcar. Colocava umas raspas de casca de laranja que tinham chupado antes, mas o bolo raramente ficava com gosto de laranja.
Se os vizinhos sentissem o cheiro, não daria para saber de qual apartamento vinha.
Depois, o homem e a mulher jogavam cartas.
Quando a mulher voltava a ler, às vezes soltava uma risadinha, e quando o homem perguntava o que era, ela lia um trecho à meia voz para ele.
A mulher tinha uma voz bonita.
Havia uma infiltração no banheiro.
Tinham medo de que aquilo desse problema em algum momento,
infiltração nunca é algo bom. O homem não entendeu por que a mulher se preocupava tanto com aquela infiltração.
O homem disse para Célia: “Se quiser, eu dou um jeito nisso, é só trazer o material”.
Era difícil estar sem obras.
Talvez pudessem se amar para fazer passar o tempo.
Talvez não se gostassem o bastante.
Célia vinha e dizia os nomes das pessoas que haviam caído, como eles.
“Paciência”, ela dizia.
Havia gente que tinha caído e desaparecido.
Havia os suicidados.
Seus pais não sabiam onde os dois estavam e não podiam saber.
Os pais também poderiam ser torturados ou mortos, assim como os filhos dos que tinham filhos e acabaram caindo.
A mulher dizia que, quando saíssem, podiam dizer aos pais que tinham mudado de país.
Enfim, no dia, às quatro da manhã, a mulher foi tomar seu último banho, bem rápido. Aproveitou para raspar as pernas.
Depois que ela saiu, o homem entrou no banheiro.
A mulher se aprontou com roupas sérias, que faziam com que ela parecesse mais velha.
O homem vestiu um terno, que fazia com que ele parecesse mais respeitável.
Eles seriam conduzidos para a rodoviária em um carro que tinha cheiro de spray de cabelo e cigarro.
Depois, iriam em um ônibus úmido e atravessariam a fronteira.
De lá pegariam um avião.
As passagens tinham seus novos nomes.
O homem abriu a porta para Célia.
A mulher conferiu se eles não tinham esquecido nada.
Célia perguntou se eles estavam prontos para partir.
Ambos responderam que sim.