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De A a Z

Maraíza Labanca

Ela chegou com os olhos pedintes. Tinha perdido o caminho de casa.
Fui-lhe dando palavras de comer.

Contava-lhe os mitos de origem: o Amor é filho da Pobreza.

Ela ainda não sabia.

Contava-lhe histórias grandes, por mil e uma noites, para adiar a morte.

Dava-lhe minhas mãos vazias.

Cerzia sua blusa por dentro para que ela pudesse sair pela porta do mundo. Era como se ungisse suas asas, enquanto ela corria nua pela casa feito uma criança doida de alegria.

Cordeiro de Deus que traz os pecados ao mundo – Eu rezava, mas não havia testemunhas.

Ungi as asas de todas as crianças que viviam sem pecado.

Comecei pela letra a.

Elas cresciam.

Ensinei-lhes também as vogais noturnas. A escrita da noite – e elas cresciam.

A dobra dos H’s, quando já tinham assombro.

E elas cresciam.

Disse, enquanto amamentava uma delas, com infinita ternura, não se pode cerzir o vidro das janelas. Ainda é cedo, não sele a abertura da porta

E elas cresciam.

Um relâmpago silencioso riscou o vidro transparente de uma vida.
Não se restaura um destino trincado, como não se apaga o nome em um livro.
Porque tudo se levanta como um cravo. Um moinho do mundo.

Cordeiro de Deus que traz os pecados ao mundo. Eu rezava. Era uma espécie de Zaratustra a professar para os tímpanos mais mudos.

Foram abatidos dois touros, um búfalo, três pássaros. Foram mais de quarenta animais mortos naquela noite, após a missa profana, em que despejei, com as mãos em concha, um punhado de água sobre a areia fina, na esperança de fertilizá-la. Construí uma ponte iluminada, fiz soprar um vento fresco pelas suas coxas, estendi um chão como quem estende um abismo.

E rezava, sozinha.

O relâmpago de luz desenhou a última letra de nossa língua, a penúltima do meu nome: Z. Três cortes no espaço, com faca, punhal ou lápis, a trinca que ninguém vê, as asas. O ovo de Clarice, a rachadura em todas as coisas, sem que o ensaio do voo pudesse chegar ao seu auge.

Talvez eu seja mesmo o diabo, como todas as mães são demoníacas, como não há nada mais frágil que uma mãe.

Aquela que faz desaprendizagem do mundo.

Tende piedade de nós: pede a escrita desta mulher antiga – Antígona – que segue uma lei que não é a dos homens, sacerdotisa das intensidades.
A que nunca aprendeu a sacrificar a beleza para expiar a dor.

Ungi-lhe os lábios, dei-lhe as músicas, não as das quintas, mas as das quartas, num quarto de noite. Cobri-a de nudez. Despertei, meu Deus, despertei seus olhos trêmulos. Olhei-os fundo:

Toda alfabetização é um batismo.

E a eternidade do leite ainda jorra dos peitos de uma mulher que não teve tempo de ensinar o mais importante: