O hotel fica na altura do número 2.019
Ewerton Martins Ribeiro
No meio do caminho tinha uma pedra, e a pedra era o homem
“De todas as viagens que fiz, duas marcaram a minha vida de forma decisiva”, conta-me um senhor que acabo de conhecer, enquanto me escondo de pessoas que não quero que me encontrem, sem saber exatamente por que, tentando não pensar muito nisso. “Marcaram por quê?”, pergunto, já supondo que ele vá falar em praias paradisíacas, paisagens surpreendentes, excentricidades autóctones, essas coisas que agradam as pessoas que gostam e ainda podem viajar. “Marcaram por causa de onde eu me hospedei nessas duas ocasiões”, ele diz. E, indiferente ao meu ar surpreso, o homem continua, sem que haja tempo para que eu faça qualquer pergunta mais objetiva ou mesmo para que comente que eu também tenho um particular apreço por hotéis.
“A primeira foi quando eu fiquei num hotel do momento, que não tinha gerente, restrição de horários nem registro compulsório de hóspedes. Uma excentricidade, você vai me dizer. Pois eu lhe digo que isso nem era o mais estranho. O principal era que o hotel se orgulhava de ser o único do mundo que havia abdicado das trancas em suas portas. Nele, quem quisesse circular, que circulasse; e na hora que bem entendesse. Se quisesse, o hóspede poderia até mesmo sair sem pagar que demoraria anos até que a administração – se é que havia administração – percebesse o desfalque e fizesse todos os trâmites necessários para acioná-lo por sua dívida – isso se fizesse”.
Suspeitando algum exagero, pergunto se de fato não havia trancas nas portas. “Não seria uma força de expressão?”, eu digo, enquanto me distraio com o reflexo torto que, em meio ao escuro, se projeta de uma bandeja de alumínio caída no chão. “Nos quartos havia, mas não nas portas da frente, nós fomos conferir. Em todas as portas, exceto nas dos quartos, o que havia eram enormes buracos no lugar das fechaduras, buracos pelos quais se podia olhar de dentro para fora e de fora para dentro sem que fosse preciso se curvar. E, para abrir e sair, era só empurrar”.
O homem continua: “Em razão disso, se havia inúmeros segredos neste hotel, como há em quase todos, ao menos não havia nas portas. E naquele tempo nada durava muito como segredo, se é que o rapazinho me entende”, ele diz, inquirindo-me com o olhar.
Olhando nos meus olhos, o homem revela-se num saudosismo triste, como quem nunca quisesse ter-se distanciado do espírito do hotel de que falava. Este velho viveu, é o que penso, tentando uma íntima condescendência, mas depois me recrimino por ainda estar pensando demais. Que bom que havia vivido, enfim. Se havia. Que houvesse, então. Por um instante sorrimos juntos, mas em seguida ficamos sérios. O homem, então, retoma a história.
“Preciso fazer um reparo. É que talvez até houvesse gerente neste hotel; o fato é que, se havia, ele pouco ou nada fazia, que eu nunca o vi, e olha que eu fiquei hospedado por um tempo que eu nem sei contar. No passado, eu vivia muito em movimento, sabe. Eu transitava muito. Só fiquei tanto tempo em um só lugar porque o hotel me parecia mesmo o que de mais avançado já havia sido pensado no ramo da hotelaria, mas aí…”.
Ao dizer isso, o velho mergulha em silêncio. E, quando retorna à consciência, recomeça do ponto anterior, um pouco perdido. “Na verdade, penso que talvez houvesse sim um gerente, um gerente que estivesse apenas cuidando das suas próprias coisas, em vez de cuidar do hotel, que era a sua função. Penso que ninguém deveria agir dessa forma – não quando o que se pretende é ser um gerente de primeira ordem e manter seu hotel funcionando para sempre, de forma cada vez melhor”, ele diz, não parecendo saber exatamente aonde quer chegar. Por cortesia, concordo com um gesto de cabeça, e seguimos nos olhando, meio que sem saber como retomar a palavra.
Aqui somos duas variáveis desconhecidas recolhidas em um canto escuro a conversar sobre hotéis, mas de repente tenho a sensação de que este velho sabe, assim como eu sei, que nesta vida toda palavra pronunciada pode ser a última e é sempre necessariamente precisa, daí o seu peso fundamental, a sua importância máxima, a sua singularidade essencial. Mas eu não sei se eu sempre soube disso. Talvez isso seja algo que, por algum motivo, eu só esteja sabendo agora, conversando com este velho. De toda forma, neste momento eu não sei o que eu sei e o que eu não sei. Eu estou um pouco confuso, para falar a verdade, mas talvez eu não devesse pensar muito nisso. Ao me ver me perdendo em meus pensamentos, o velho tenta me fazer rir: “Bem, talvez no fundo
o gerente fosse apenas um artista frustrado”, ele diz, mas parece se arrepender do gracejo antes mesmo de terminá-lo.
E agora eu e o velho nos encaramos. Eu sigo interessado na história, mas ela já me soa banal, e isso me incomoda. Um hotel sem trancas nas portas? Ora, isso no fundo não é nada demais. Haja trancas ou não, em qualquer hotel se pode sair e entrar, é só ter as chaves, agir pelas regras, arcar com as próprias obrigações. E em todos os hotéis existem chaves, ou não? O que haveria então de tão especial nisso tudo? Já o velho, como que acessando a parte da minha mente onde se recalcam as mais inconfessas percepções, parece se preocupar especialmente com o fato de eu já não ter achado graça na última piada, talvez refletindo sobre o que pode restar quando nada mais é capaz de fazer rir. Sem saber como agir, o homem então simplesmente prossegue com suas lembranças, como se nada mais lhe restasse, senão… Como se nada mais houvesse a fazer, senão se fazer ouvir e compartilhar a história.
“Ah, que hotel! Sem gerente, os funcionários pouco arcavam com as suas obrigações, era um problema após o outro. Mas até que era divertido, a gente tinha de lidar com cada coisa… Certa vez, eu mesmo tive de trocar todo o encanamento do banheiro do meu quarto, porque era impossível falar com qualquer setor da administração que pudesse resolver o problema. Mas eu fiz exemplarmente o meu serviço, ficou um orgulho. Hoje eu posso dizer que eu ajudei a construir, ou melhor, hoje eu posso dizer que eu ajudei a manter um pouco tal como era este maravilhoso hotel em que um dia me hospedei”.
De repente, toda esta conversa já me dá raiva. Eu antipatizo com este velho, que por coincidência se parece um pouco comigo. Talvez seja por isso que eu esteja antipatizando, eu penso, e assim que penso, acho graça, e simpatizo outra vez. Fico então satisfeito por ter achado graça e penso em fazer algo, me mover, levantar, sair desta situação, mas logo noto que eu já não me lembro mais o que eu estava indo fazer quando vim parar aqui, no escuro, tampouco como fazer para… A verdade é que eu me sinto cansado, eu não quero pensar em situações ou no que quer que seja, então eu sigo ouvindo este velho passivamente, tentando me esquecer de pensar em qualquer coisa. Eu estou um bocado esgotado, eu consigo perceber, mas não sei muito bem o que me trouxe até
esta situação.
Eu olho para este velho e penso em perguntar sobre este seu hotel tão particular, perguntar por que ele o deixou, se se trata mesmo de um hotel tão interessante assim, perguntar se este hotel de fato existiu tal como ele conta ou se tudo não passa de uma história para se contar a alguém quando nada mais há que se fazer. Mas eu apenas sinalizo para que ele continue. Eu estou cansado e, de toda forma, de alguma forma eu sei que neste momento é essencial para este velho contar-me a história, a despeito do quanto ela me desagrade ou não.
“Talvez você esteja se perguntando por que eu considero minha experiência neste hotel a melhor que já tive. E eu entendo, quer dizer, por um lado eu não posso deixar de sorrir quando me lembro de tudo o que vivi; as pessoas que conheci, as aventuras em que me meti, os desafios que superei. É claro que também havia nisso tudo as suas questões, a começar pelo óbvio problema de segurança por que passa um hotel sem trancas nas portas. De toda forma, se eu quiser ser sincero com você, eu terei de dizer que nada de efetivamente grave me ocorreu no tempo em que eu estive neste lugar, seja dentro ou fora do quarto”.
Eu agora me sinto acuado no meio disso tudo, a conversa já me incomoda verdadeiramente. Eu não entendo aonde o velho quer chegar e, para falar a verdade, eu já não quero mais saber, tudo o que penso é que talvez eu passasse melhor sem ouvir nada disso. Quem é este velho, afinal, para estar aqui me alugando com esta história tão sem pé nem cabeça? Tudo o que ele diz é confuso, na verdade, incômodo, soa mesmo estranhamente perigoso, e então eu me convenço de que é provável que eu esteja simplesmente a dar ouvidos para um velho já enlouquecido quando eu deveria estar… Sim, eu certamente deveria estar, agora, mas eu já não consigo me lembrar o quê.
Na expectativa de fazê-lo terminar, mas também querendo ser educado (entre a antipatia e a simpatia, eu termino sentindo uma estranha empatia em relação a este velho), eu lembro-o de que no início da conversa ele havia falado sobre duas viagens que lhe haviam marcado a vida, e não de apenas uma. Pergunto-lhe então sobre o segundo hotel, tentando apressar o fim da história – mas logo me arrependo de abrir mais essa frente para a sua verborragia. Eu sinto falta de ar, o homem me pergunta se está tudo bem, eu respondo que sim, sem muita certeza de nada, na verdade incomodado com a pergunta. Eu me sinto envelhecer, o velho parece notar que desfaleço, mas –
…e então, sem me poupar, o velho que vejo refletir me fala de um hotel oposto ao anterior, com trancas e registros os mais diversos, chaves e horários, do qual era praticamente impossível escapar; um hotel com um gerente rígido e onipresente, em tudo insensato, e dado a cuidar de tudo com rigor implacável. “Neste hotel”, ele me diz, “se algum hóspede discorda do que quer que seja, ou mesmo manifesta qualquer inquietação, qualquer desejo, vontade própria, o gerente e os seus funcionários o punem severamente – a depender do caso, até mesmo com a morte”. Em razão disso, é o que eu ainda ouço-o dizer, ele e os demais hóspedes viviam fugindo dos funcionários, escondendo-se na expectativa mesma de sobreviver. “Era como se tentássemos vencê-los negativamente,
entende? Vencê-los, mas como que por omissão…”, ele diz, tomado por certo assombro, como se se ouvisse pela primeira vez.
“Mas por que o senhor foi se hospedar em um hotel assim?”, eu pergunto assustado, como que acordando de um transe, sem entender como um hotel deste tipo poderia existir, sem entender por que o velho o havia colocado lado a lado com o primeiro hotel em suas memórias, sendo ambos atravessados por valores tão diferentes, tão discrepantes, sem entender por que diabos eu havia sido tragado por tudo isto, esta conversa sem pés nem cabeça, sem membros nem nada, muito antes de qualquer sentido. “Me diga, por deus, onde fica este hotel para que eu nunca pense em pôr os meus pés lá!”, eu ainda digo, dissimulando um assombro espirituoso com o rumo inesperado da história, tentando uma leveza já agora de tudo impossível de se alcançar sob os meus pés, e então
os meus pés, onde os meus pés, se eu não sinto os meus pés.
“Como o senhor poderia se hospedar em um hotel assim?”, eu ainda insisto, mas sentindo que, de alguma forma, em meu íntimo, eu já não sou mais capaz de outra vez formular nenhuma entre as minhas falsas questões. Tudo se embaralha na minha mente, e onde a minha mente; então a minha voz some, e onde a minha voz. Eu me sinto perdido, e já não quero mais que nada seja dito nunca, nada nunca, nunca mais, eu tenho vergonha. Eu gostaria de silêncio, mas mesmo no silêncio em que estou agora, este silêncio intransitivo, insuportavelmente meu, este silêncio materialmente absoluto, tudo parece fazer um barulho ensurdecedor ao redor de onde estou. E onde eu estou.
Eu não posso suportar, sinto que não posso suportar – e este é o instante em que o homem já não me olha mais o reflexo dos olhos, senão através deles.
Ouço então o que ele diz. Ouço, mas já não posso mais ouvir. Ouço, e na medida em que me preparo para me surpreender, resto incapaz de simular outra vez reação, senão este último balbucio e, então, o calar: “Então você ainda não compreendeu. Eu falo do hotel em que estamos agora”.